domingo, 4 de dezembro de 2016

Opsígono, poesia finalista no XXV Concurso Nacional de Poesias Augusto dos Anjos


OPSÍGONO

Autor: André Telucazu Kondo (Jundiaí/SP)
Pseudônimo: Jeremias Sanlape
Intérprete: Luciano Rodrigues

I
Meus opsígonos dentes
só nasceram
para o incômodo ato de preencher
vazios
sorriso tardio – que ninguém vê

Um galho sobre o muro foge pela calçada
mãos de crianças em aurora
com pequenos molares ávidos
trituram as amoras
brutalmente
elas ainda não sabem
que as amoras foram feitas
pra se dissolverem gentilmente, sem pressa?

O céu-da-boca
testemunha as amoras
mas nunca saberá
o que só a língua sente
no chão

II
Por que o olhar dela revelado
na moldura dos anos
ainda busca o meu olhar?
não são cegas as imagens
pregadas nas paredes
como cristos alheios?

Não é silêncio
a boca em eterno riso
de uma foto matrimonial
em que o sim disparado
atinge como um nunca mais o coração?
A maquiagem é a poeira
que esmaece o vítreo rosto
quando a cor partiu?

Da janela, as amoras
desafiam o desbotado dos dias
ninguém se importa

III
Reluto em exumar as lembranças
daquele túmulo em forma de arca
o baú dela quando aberto
tem forma de boca
que não sorri
apenas devora os dias
por isso me afasto
para não ser devorado
nem o espanador o toca
a dor não pode ser espanada
as penas supõem leveza
e não há mais voos
guardados

Toda a consorte herança
inventariada
como se tudo o que vivemos juntos
pudesse ser catalogado
em trastes
eis aqui quinze mil e seiscentos pores do sol
cinquenta e três dúzias de rosas brancas
trinta e sete viagens ao mar
trezentos e um jantares no pequeno restaurante da esquina
umas tantas mil amoras colhidas
e nenhum filho

Mais do que as coisas de dentro
do velho baú
o pó sobre o tampo
tem mais memória...
e guarda o sorriso

que jamais sorri.

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