Anderson Braga Horta
I — BALIZAS DE UM
CAMINHO
UM
OLHAR
Aves de
arribação, que passais tristes,
que buscais o
calor de novos lares...
aves de
arribação, acaso vistes
as asas de um
amor cortando os ares?
Se da esperança
a voz sumida ouvistes,
se lágrimas de
luz brotando aos pares
de ocultos
arquipélagos sentistes,
nos vôos rente
ao dorso azul dos mares,
dizei-me onde é
que estão, porque são minhas!
... No entanto
elas se foram, tênues linhas
já prestes no
horizonte a mergulhar.
Não
responderam... Nem sequer me olharam.
Mas diz o
coração — que naufragaram
na profundeza de
um celeste olhar.
(1950)
UTOPIA
Que saudades,
meu Deus, de uma terra infinita,
terra que nunca
vi, onde em luzes se agita
o pássaro do
amor, a pulsação das almas!
Meu país ideal,
que do deserto as palmas
não beijaram
jamais... Terra do sol nascente,
da perpétua
alvorada, onde brota a semente
sempiterna do
amor, dos sonhos e da vida!
Pátria da
primavera! ó luz desconhecida,
que do
insondável desce e nos penetra fundo
a alma pequena e
vil, no globo vil e imundo,
como a purificar
a sordidez da Terra!
essência
imaterial, que em nossos peitos erra,
do espírito, do
amor, da própria eternidade!
Oh! que universo
encerra a nação da Verdade,
terra das
ilusões perpetuamente em vida?
Vive em brumas,
talvez? nos báratros perdida?
Do próprio
coração —esse pego profundo
debatendo-se em
vão nas borrascas do mundo—
a Humanidade
ansiosa aos céus lança este grito:
“Senhor! Senhor!
dá forma e dá vida a este mito!
Concretiza este
sonho, essa terra ideal,
pátria do céu
azul, da ventura eternal,
país que traz no
seio, insondáveis, perdidas,
primaveras de
luz, fantasias floridas!”
E este grito se
perde e esvai-se pelos ares,
do deserto à
floresta e dos rios aos mares.
Mas eu sinto no
peito uma ânsia infinita,
um desejo
profundo, e tenho a alma fita
numa estrada sem
fim, cercada de ciprestes,
inundada de luz
e de aromas agrestes,
na reta que se
perde além dos horizontes,
resplendente da
luz de incognoscíveis fontes
a jorrar, em
cachões, numa espectral coorte...
E eu vejo esse
país nas veredas da Morte.
(1951)
NAVEGAÇÃO
Cintila a noite
azul, povoada de estrelas.
Nos olhos do
Universo ardem chispas de luz.
Velas pandas no
espaço, as ástreas caravelas!
Pelo éter
infinito a Via Láctea as conduz
—correntes do
Alto Oceano— a ocultos portos. Velas
pandas na
escuridão! Nos longos braços nus
o Cruzeiro do
Sul a ignotas Compostelas
vai carregando o
corpo etéreo de Jesus.
A pálpebra do
luar fechou-se. Um manto baço
de nuvens cobre
o céu. No entanto, em todo o espaço
ardem
constelações — além dos olhos meus.
E eu sonho os
mil milhões de universos pulsando,
naus do imenso
Oceano, ardentes navegando
para o eterno
esplendor das voragens de Deus!
(1952/1979)
DIA APÓS NOITE
Vendo o azul,
que dilúculos augura,
da madrugada, e
a mágoa do sol-posto,
quedo-me triste,
e penso, com desgosto:
O mesmo céu, que
é berço, é sepultura.
Assim também, um
dia, no teu rosto,
nos teus olhos
de cálida brandura,
vi tua alma a
acenar-me, inda mais pura
sob o véu do
cabelo descomposto.
Como a noite,
porém, sucede a aurora,
tu me fugiste, e
a luz, que me envolvia,
nas trevas se
tornou em que ando agora.
Retorna entanto
o sol, que antes morria.
E a minha alma,
por isto, já não chora,
mas espera o
raiar de um novo dia.
(1953)
O
CEMITÉRIO DE ELEFANTES
I
Vem silente o
tropel dos tardos elefantes.
(África ardente!
Aqui a vida, vária e incerta,
pulula no solar
da floresta referta
e enche a
desolação dos ermos palpitantes!)
Monótono, ao
calor, sob a amplidão aberta,
segue o rebanho.
Em grupo, estranhos caminhantes
passam, longe.
Esvoaça a alvura dos turbantes.
Melodias de fogo
o sol, triste, concerta.
De repente, um
clamor assombra os horizontes.
Desordenada,
agora, a procissão caminha,
com a fúria dos
leões, estremecendo os montes.
E em grita,
arruinando as florestas austeras,
eis estoura a
manada, em cólera daninha,
espantando os
chacais e amedrontando as feras!
II
Súbito um deles
pára. Arquejando, sombrio,
com um mudo
olhar de adeus, vai deixando a manada.
Pesa-lhe o ar. A
terra aos pés lhe some. E em cada
árvores algo de
si vê, no seu desvario.
No cérebro do
bruto, em célere revoada,
relampejam
visões do passado. Vazio,
o olhar agora vê
na corrente do rio
o destino da
vida... O fim que o espera é o nada!
A selva onde
nasceu, as planícies que amava,
o céu, a luz, o
ardor da natureza brava,
tudo isto nunca
mais, nunca mais há de ver.
Mas aonde vai,
que marcha e tropeça e rasteja?
Que fruto derradeiro
inda provar deseja?
Que migalha de
vida inda ele quer colher?
III
Eis fronteiro ao
destino o bruto moribundo.
Ao pé de uma
cachoeira, o olhar embebe, aéreo,
além da água
irisada. Onde está? Que mistério
o trouxe a este
lugar de que não sabe o mundo?
Atravessa o
caudal. Do outro lado, no fundo,
uma clareira se
abre. Um templo? um cemitério?
O ar, grave e
sepulcral como o de um monastério,
agita-se,
ferindo o silêncio profundo.
Pára, hesita o
elefante, entre brancas ossadas,
às centenas no
chão. Fraqueja, desfalece,
já sentindo na
fronte o anélito do fim.
E sereno,
fechando as órbitas vidradas,
pesadamente cai
no solo, que estremece,
entre arcos de
granito e presas de marfim!
(1953)
AS CIGARRAS
ESTÃO CANTANDO NOVAMENTE
As cigarras estão
cantando novamente.
E eu saí para
ouvir o canto das cigarras...
Uma aqui, outra
ali, monótonas, bizarras,
zinem, fremem
assim melancolicamente
como folhas
caindo à luz frouxa do poente.
Hoje a tarde
está límpida e suave,
da leveza pagã
de uma aquarela...
Uma cigarra geme
uma nota mais grave.
E uma folha
amarela
inexplicável
rasga
verticalmente o quadro da janela.
O mar,
imperturbável,
beijando
longamente a costa atlântica,
dança, plácido,
ao som de uma canção romântica
trazida pela mão
sonâmbula da brisa.
E, aos murmúrios
que vêm da profundeza oceânica,
a tarde
agonizante se eletriza.
De repente,
numa fúria
satânica,
um grito de
volúpia estremece a atmosfera,
como se a
maldição de uma cratera
desabasse na
calma do crepúsculo!...
Mas a angústia passou,
efêmera e nervosa,
como passa a
poesia de uma estrela cadente.
Numa agonia
vagarosa
a tarde vai
morrendo. Um pontinho minúsculo
rompe as nuvens.
Depois, languidamernte,
milhões de
estrelas jorram no infinito.
Uma última
cigarra, impertinentemente,
ensaia ainda um
fretenir aflito.
E eu, que vim
para ouvir o canto das cigarras
monótonas,
bizarras,
volto ouvindo o
esplendor de uma orquestra divina,
que aos poucos
vai morrendo em trêmula surdina...
(1955)
O
TOCADOR DE REALEJO
De repente
melodia estranha
avassalou meus ouvidos
como descida dos
céus.
Olhei em volta,
num deslumbramento.
Era a primeira
vez que via um realejo.
E toda a rua se
maravilhou
e crianças
surgiram não se sabe donde
e o céu desceu à
terra
e o mundo
parecia salvo!
O macaquinho em
cima do instrumento fazia piruetas, sério,
cônscio de seu
papel na alegria geral.
Homens
satisfaziam-lhe o pires estendido.
Mulheres
tagarelavam e crianças apontavam sorridentes com o dedo.
A multidão se
dispersou lentamente
sem que ninguém
notasse o velhinho de barbas brancas tocando a
manivela.
(1956)
LABIRINTO
Nem com os não
merecer não nos perdera.
E, pelos possuir
sem merecer,
as mesmas penas
sofro que sofrera
por, outrora,
querê-los e os não ter.
Ah! quem tal
turvamento me entendera!
Em pranto,
sinto, sem o compreender,
que eles são
velas me esvaindo em cera,
velas em cuja
luz arde o meu ser.
Penso que vou
morrer, que o sol me apaga.
Olho-os, e
ferem-me as pupilas deles;
beijo-os, e,
então, sonegam-me o calor.
Não profundemos
mais tão funda chaga!
E, pois que
tanto mal me fazem eles,
devolvo-te os
teus olhos, meu amor.
(1957)
TROVA
Vida
melhor não existe
que a das
cigarras: à toa,
cantando se a
vida é triste,
cantando se a
vida é boa.
(1963)
II — ALGUNS POEMAS
SOBRE POESIA
GÊNESIS
Fruto de
estranho sonambulismo,
grave e sombria
como um altar,
minha poesia
nasce do abismo
onde em
desmaios, enquanto cismo,
brilham suaves
lendas de luar...
Nasce do fundo
leito dos bosques
onde negrejam sombras
de amor;
da água da fonte
trêmula e triste
que se destila
silêncio e flor.
Nasce da névoa
deslumbradora,
do encantamento
das ilusões;
do indecifrável
poço da angústia,
cheio de rubras
aparições.
Nasce do abismo
desses teus olhos,
lagos profundos a
palpitar,
onde em
desmaios, palidamente,
cantam suaves
lendas de luar...
(1955)
TORRE DE BABEL
A noite desceu,
bruta e simples
em sua beleza
selvagem.
A noite caiu
como um fruto,
que o homem,
faminto, comeu.
Noite estrelas,
lua nua,
rua
pálida à luz da
lâmpada sombria,
noite
caixa-de-segredos,
noite!
Eu não descanso
em ti, que és a semente,
descansarei à
sombra da árvore alta.
Noite do albor
da adolescência, que
foste a minha
primeira namorada,
amo-te como se
ama a um passarinho morto.
Noite oceano,
olhos da amada,
nunca me
esquecerei de teu deslumbramento,
que tanto é bela
no teu rosto a vida!
Tinha uma pedra
no caminho, atirei
no céu — estrela
virou.
Cai, noite, cai,
doce fruito,
o homem faminto
te espera.
(1958)
FÁCIL
Digo: Na
remansosa
tarde, expira
uma rosa
e pende o cálix,
grácil..
Digo-o porque é
mais fácil
do que dizer: No
dia
sem glória e sem
poesia
feito em trevas
sem nome,
morre um povo de
fome.
(1962)
BABÉLICA
Falo várias
línguas
e não me
entendo.
Quanto
aprontarei
meu próprio
instrumento?
Falo várias
línguas,
toldas elas mal:
CDA, Bandeira e
—pecado capital—
Castro Alves,
Bilac,
etc. e tal.
Por mais que me
explique,
não me
justifico.
Podia, por
desfastio,
inventar o
Concretismo.
Mas já foi inventado
e arquivado. Me
restaria agora
buscar a receita
(ah, mas é mais
fácil
esperar que
terceiros)
pra desta
babélica
convergência de
outros
que é (m)eu,
cozinhando-a ao
ponto,
tirar o eu
multívoco
e uno,
estranhamente
próprio,
que me/eu fosse.
(1963)
TANGENTE
No Mar Encoberto
p l á c i d o
idéiaemoção
(palavra) =
a c
(s)
b’
r o
cego(s) na
superfície. Nas
entrepalavras
verde-
(rasgada agora crespa)
-lucila a água
fluidíssima.
Sobrejacente a
nave navega,
nada.
(1966)
TELEX
A
Rumen Stoyanov
A
poesia é a fonte em que
ativamos a sede.
A poesia é o alimento que
impede a saciedade.
A poesia é o espinho que nos
protege da flor.
Mas a poesia é flor, ou
promessa de flor.
A poesia é o Nada
nos-criador que modulamos.
A poesia é a Rosa que
inventamos prévia.
A poesia não é a rede, nem o
mar, mas o lançar da rede ao mar.
A poesia é o plágio do não
visto
Atenção:
a poesia é uma explosão
controlada.
(1973)
MULTÍMODA
Não apenas de
cálculo se nutre,
nem somente de
música, a Poesia.
Nem é ela o
noturno, o tetro abutre
a tripudiar nas
podridões do dia.
É maior que as
campinas onde a lua,
cavalo branco e
azul, selvagem nitre;
mais do que amor
medrando em pedra nua,
sonho de flor na
crosta de salitre.
Tudo cabe no
poema — o claro, o escuro,
o cinza,
afinidades, dispersão,
fúrias, mares,
exílios, natureza.
Que não visa a
Poesia ao belo puro,
nem à pura
emoção, mas à emoção
transfigurada em
timbres de beleza.
(1977)
III — LIVRE ESCOLHA
OLHOS
De repente
descubro
a lavada beleza
de teus olhos:
(entre
mim e o sono,
trazes
um sol nos lábios
e
nos seios Vênus)
teus olhos são
como céus que choveram.
(1959)
INVENÇÃO
DA NOITE
Deste silêncio e
desta treva
construo a minha
noite
particular e
intransferível.
Não preciso
inventar as estrelas,
elas nascem e
brilham por si mesmas.
E à meia-noite
uma lua triste
levanta a cara
de prata no horizonte
e verte nos meus
olhos um choro, um frio.
(1959)
CELACANTO
Nadando em
costas d’África
Fruía o
Celacanto
Emissário do
outrora
O seu quinhão de
pranto
No sal que imita
a lágrima
Das águas no
acalanto.
Talvez último príncipe
De extinta dinastia
Em seus rudes sentidos
A solidão doía
Gritava o alto silêncio
Da profundeza fria.
Do seu mundo
apartado
Por muitos
milhões de anos
Só — atual e
pré-histórico
Assombrando os
oceanos
Que mistérios
guardava
Nos seus pobres
arcanos?
Na viuvez atônita
Tu Celacanto corres
De ti e contra ti
Que de lembrar te morres
E que em tua orfandade
De ninguém te socorres.
Tosco irmão
Celacanto
Em solitário
nado
Brasão de sonho
em fuga
Em campo blau
plantado
É verde o teu
enigma!
E eu te decifro
e calo.
(1960)
REGRESSO
Viver é um
desterrar-se
do Limbo, do
Nada,
do
Onde-não-se-Sabe.
Convivemos o
exílio
cordatos,
ferozes,
tolas rãs no
lago,
esquecidos,
vagos,
saudosos às
vezes
do que
éramos-nada.
Curta
circunviagem,
esvai-se a vida,
trêmulo
peixe no mármore.
(1961)
(A)MAR(O)
Em
março o mar soletra
sol e ar e luar.
E o pescador
espera,
a cismar,
que das
espumargênteas
vagalínguas a
ondear
saia a palavra
peixe.
E põe-se a
piscicar,
de anzol,
tarrafa, rede,
arpão — o mar.
Tempera-se a
salina
escuma na carícia
doce do ar.
Chispam
gaivotas-hifens
a mergulhar,
relâmpagos de
união
entre ar e mar.
E o pescador
espera.
O mar tostou-lhe
a cara,
pôs-lhe vagas no
olhar
e na pele. Sua
alma
tem um fundo de
sal.
Mas deu-lhe o
mar um vago
íntimo marulhar
que em março,
abril, desmaios
de amor lhe dá.
E essa amável
magia
é que o faz
esperar,
de janeiro a
dezembro,
no seu destino
claro:
amar o mar
amaro.
(1963)
RAÍZES
À noite
elaboramos nossa essência
(que importa se
esvaneça na alvorada?):
uma ânsia de
fantástica existência
de oníricos
fermentos insuflada.
A noite é quem
recolhe essa mais fluida
secreção da
alma: o sonho. Ou, antes, a alma
em movimento, o
ser, que, sendo, cuida
de fazer-se,
recriar-se em louro e palma.
Alma, sonho. O
criador sendo a criatura,
como argila que
o próprio sopro anima!
Vive-se o dia
para a noite escura
que do clarão do
sonho se ilumina.
Pois o que somos
sob o sol? — Raízes
de inda
inconcretas florações felizes.
(1963)
MATEMOS
A ROSA
A Eliezér Demenezes
A gripe me
separa de minha família.
Casado —
provisoriamente no regime de separação de corpos,
pai —
provisoriamente frustrado, desterrado para o outro extremo da
casa,
durmo na sala,
de quarentena.
Mas não durmo:
penso no porvir de meus filhos.
Não o desejarei
de rosas.
Não porque pense
nos espinhos
¾ o
Homem forma-se na luta
e muita vez os
espinhos valem mais do que as rosas.
Mas porque as
rosas têm hoje outra carga simbólica
e já nada
diferem dos cogumelos.
Pais de todo o
mundo, cuidado! aos nossos filhos
não lhes demos a
cheirar destas rosas,
a comer destes
cogumelos.
Sei que o meu
apelo é patético,
sei que somos
doidos brincando no jardim,
e talvez eu
mesmo ajudasse a plantar a rosa,
a dar sombra e
umidade ao cogumelo.
Mas os meus
filhos estão chorando
e agarram a vida
com ambas as mãos no seio materno.
Quisera lhes dar
a justiça que não temos construído,
o amor que não
temos regado.
Fujamos
para o quintal!
fujamos para os
vastos abandonados quintais
de nascituras
hortas, pomares e roçados.
A rosa corre de
mão em mão
¾ quem quer a rosa?
¾ quem não quer a rosa?
¾ quem a despetala?
¾ quem lhe aduba a terra?
Fujamos para o
quintal
e esqueçamo-la,
entre abóboras,
repolhos e pepinos,
esqueçamo-la,
sob os pimentões
e o trigo
sepultemo-la com
sua morte.
As batatas e as
cebolas manam poesia.
(1963)
CRIANÇA
CHORANDO
Para meu filho Anderson
Teu pranto abala
as raízes da noite.
Tuas lágrimas
reanimam a velha metáfora
e molham
consteladamente o lençol.
Da obscuridade
da tua fome
e do teu desamparo
clamas pelo dia,
o teu dia,
quando fraldas e
cueiros serão retratos esquecidos no álbum
e mamadeiras e
chupetas te farão sorrir sobre outros berços.
Da noite do
ventre materno saíste para a penumbra
e choras.
Tão pequeno e já
franzes a testa.
Porventura sabes
quanto pranto é preciso para fazer-se um homem
e te constróis
impacientemente.
(1963)
MINHA
FILHA
Para a Marília
Minha filha,
tudo em ti é pureza,
mesmo o que em
nós nos lembra
o charco
original.
Merecias um
madrigal,
não um poema
lírico-triste,
cheio de vã
filosofia.
Por ti, devera
eu reencontrar a inocência.
Mas como ser
inocente e lúcido?
Não, hoje não
escrevo o teu poema.
Olho-te, avaro:
meu amor é um lago
incomunicativo.
Te pego ao colo.
Choras.
Mudo-te as
fraldas e adoro-te em silêncio.
(1963)
SEMÂNTICA
As palavras
morrem,
virgens, de
usura,
—
Fartura —
as palavras
finam-se de
desuso.
As palavras
desviam-se,
mudam de órbita
— Democracia —
as palavras,
satélites
forçados a novos
planetas.
As palavras
ocam-se,
deslembrados
signos
— Paz, Amor —
por onde o
pensamento,
como um óleo,
vaza.
As palavras
gastam-se,
oxidam-se de
malícia e asco.
— Liberdade! Liberdade! —
As palavras.
(1965)
PLANALTO
§ O mar é um grande pulso que lateja.
O
planalto é um mar de vagas imobilizadas na diástole,
e
o pulso anula-se na tensão áspera da pele.
§ Gritos mineralizados. O tempo
lapida os cristais fendidos do
silêncio.
E das fissuras mana (imperceptível)
uma saudade marinha.
§ Esmagado espanto vegetal. Pássaros
nadam entre as algas. Seres
estranhos
deslizam no fundo. Restos.
§ O Homem, navegador crispado,
vem sulcar estas águas
coaguladas. Decifra na face
do planalto (memória
de mar petrificada)
seu arcano, e semeia-lhe
arquipélagos.
§ Sobre as vagas imóveis
um vivo mar agita-se.
(1967)
DESCOBRIMENTO
Eu, navegador
caótico,
sem carta de marear,
escassa mão no timão, quase sem leme,
igualmente desassistido das poéticas palavras
portulano, astrolábio,
e cuja invisível bússola
nem sempre funciona,
eu, marujo sóbrio
mas entretanto bêbedo de sereias impossíveis,
desta nau que os ventos compelem
—contra toda ânsia de porto
e embora me ache às vezes capitão de ventos—,
nesta longa derrota, eu,
após Circes de circo e calmarias de assexuadas sereias
resserenas,
desprezadas duzentas Índias ocidentais e orientais, Brasis
de
espanto, Antártidas de
olvido,
nesta longa derrota, eu,
vencidas onze mil solidões de sono e éter,
eu, navegador, bastou-me
erguer os olhos
e te amo
: Astros à vista! —
um céu sem céu,
luar de seios, ástrea
carnação nas faces, onde os olhos
são estrelas maiores,
nuvens de asteróides, anéis de Saturno, auroras
boreais, e um sol
violento,
rubra central da vida,
: — sim, e, oh, eu,
navegador, meu caos
organizo,
e subo e, sem vislumbre
de queda,
para o encontro
desces
(âncoras! âncoras!)
E chanto-te o terrestre
padrão nos astros êxules da carne.
(1972)
O PÁSSARO NO
AQUÁRIO
§
Era um ponto no
aquário.
Era uma escama
aberta
no verde dúbio
da água. Era uma estrela
mínima em céus
de queda.
Era um frêmito,
um ritmo,
um verso
regressivo à origem, nada,
um sopro
extinto, inda outra vez soprado
por sol de
oblívio, escuro.
O pássaro no
aquário
solfejava em
silêncio um sol futuro.
§§
E eram guelras
na escuma, e os olhos, algo
como um pranto
na areia, entre algas, planctos,
como um pranto
chorado em meio a lágrimas
retidas no olho
inexistente. E em breve
eram garras na
terra, a dura guerra,
o mar perdido e
o espaço ausente, ausente.
§§§
Garras, e a crua
guerra.
Barro de espanto
e dor no descampado
entre o sêmen do
sonho e a fronde ao vento.
Mas o dó, mas o
espanto,
a dor e seu
invento:
um sol menor no
peito;
domado, um lá na
plúmea
escama
distendida em ala urgente.
E era um pássaro
na alva de escarlata,
cantando no alto
a ária de orvalho e prata!
(1972)
NOTA
“Trova” está em Trovadores
do Brasil, de Aparício Fernandes (Rio de Janeiro, Editora Minerva,
19697); “Invenção da Noite”, “Raízes”, “Matemos a Rosa”, “Criança Chorando” e
“Minha Filha” integram Altiplano e Outros
Poemas (Brasília, Ebrasa / INL, 1971); “(A)mar(o)” e “Celacanto” figuram em
Marvário (Clube de Poesia de
Brasília, 1976); “Torre de Babel”, “Olhos”, “Regresso”, em Incomunicação (Belo Horizonte, Incomunicação / INL, 1977);
“Semântica”, em Exercícios de Homem
(Brasília, 1978); “Multímoda” (e)[, “Telex”,] “Planalto” [e “Descobrimento”],
em Cronoscópio (Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira / INL, 1983); “O Pássaro no Aquário”, no livro desse
título (Brasília, 1990); “Labirinto”, em Dos Sonetos na Corda de Sol (Guararapes, 1999); os
demais permanecem inéditos em livro.
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