segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Amostragem Poética

Anderson Braga Horta


I — BALIZAS DE UM CAMINHO

UM OLHAR

Aves de arribação, que passais tristes,

que buscais o calor de novos lares...

aves de arribação, acaso vistes

as asas de um amor cortando os ares?


Se da esperança a voz sumida ouvistes,

se lágrimas de luz brotando aos pares

de ocultos arquipélagos sentistes,

nos vôos rente ao dorso azul dos mares,


dizei-me onde é que estão, porque são minhas!

... No entanto elas se foram, tênues linhas

já prestes no horizonte a mergulhar.


Não responderam... Nem sequer me olharam.

Mas diz o coração — que naufragaram

na profundeza de um celeste olhar.


(1950)



                        UTOPIA


Que saudades, meu Deus, de uma terra infinita,

terra que nunca vi, onde em luzes se agita

o pássaro do amor, a pulsação das almas!

Meu país ideal, que do deserto as palmas

não beijaram jamais... Terra do sol nascente,

da perpétua alvorada, onde brota a semente

sempiterna do amor, dos sonhos e da vida!

Pátria da primavera! ó luz desconhecida,

que do insondável desce e nos penetra fundo

a alma pequena e vil, no globo vil e imundo,

como a purificar a sordidez da Terra!

essência imaterial, que em nossos peitos erra,

do espírito, do amor, da própria eternidade!

Oh! que universo encerra a nação da Verdade,

terra das ilusões perpetuamente em vida?

Vive em brumas, talvez? nos báratros perdida?

Do próprio coração —esse pego profundo

debatendo-se em vão nas borrascas do mundo—

a Humanidade ansiosa aos céus lança este grito:

“Senhor! Senhor! dá forma e dá vida a este mito!

Concretiza este sonho, essa terra ideal,

pátria do céu azul, da ventura eternal,

país que traz no seio, insondáveis, perdidas,

primaveras de luz, fantasias floridas!”

E este grito se perde e esvai-se pelos ares,

do deserto à floresta e dos rios aos mares.

Mas eu sinto no peito uma ânsia infinita,

um desejo profundo, e tenho a alma fita

numa estrada sem fim, cercada de ciprestes,

inundada de luz e de aromas agrestes,

na reta que se perde além dos horizontes,

resplendente da luz de incognoscíveis fontes

a jorrar, em cachões, numa espectral coorte...

E eu vejo esse país nas veredas da Morte.


(1951)



  NAVEGAÇÃO


Cintila a noite azul, povoada de estrelas.

Nos olhos do Universo ardem chispas de luz.

Velas pandas no espaço, as ástreas caravelas!

Pelo éter infinito a Via Láctea as conduz


—correntes do Alto Oceano— a ocultos portos. Velas

pandas na escuridão! Nos longos braços nus

o Cruzeiro do Sul a ignotas Compostelas

vai carregando o corpo etéreo de Jesus.


A pálpebra do luar fechou-se. Um manto baço

de nuvens cobre o céu. No entanto, em todo o espaço

ardem constelações — além dos olhos meus.


E eu sonho os mil milhões de universos pulsando,

naus do imenso Oceano, ardentes navegando

para o eterno esplendor das voragens de Deus!


(1952/1979)



 DIA APÓS NOITE


Vendo o azul, que dilúculos augura,

da madrugada, e a mágoa do sol-posto,

quedo-me triste, e penso, com desgosto:

O mesmo céu, que é berço, é sepultura.


Assim também, um dia, no teu rosto,

nos teus olhos de cálida brandura,

vi tua alma a acenar-me, inda mais pura

sob o véu do cabelo descomposto.


Como a noite, porém, sucede a aurora,

tu me fugiste, e a luz, que me envolvia,

nas trevas se tornou em que ando agora.


Retorna entanto o sol, que antes morria.

E a minha alma, por isto, já não chora,

mas espera o raiar de um novo dia.


                                                               (1953)



O CEMITÉRIO DE ELEFANTES


I


Vem silente o tropel dos tardos elefantes.

(África ardente! Aqui a vida, vária e incerta,

pulula no solar da floresta referta

e enche a desolação dos ermos palpitantes!)


Monótono, ao calor, sob a amplidão aberta,

segue o rebanho. Em grupo, estranhos caminhantes

passam, longe. Esvoaça a alvura dos turbantes.

Melodias de fogo o sol, triste, concerta.


De repente, um clamor assombra os horizontes.

Desordenada, agora, a procissão caminha,

com a fúria dos leões, estremecendo os montes.


E em grita, arruinando as florestas austeras,

eis estoura a manada, em cólera daninha,

espantando os chacais e amedrontando as feras!


                                             II


Súbito um deles pára. Arquejando, sombrio,

com um mudo olhar de adeus, vai deixando a manada.

Pesa-lhe o ar. A terra aos pés lhe some. E em cada

árvores algo de si vê, no seu desvario.


No cérebro do bruto, em célere revoada,

relampejam visões do passado. Vazio,

o olhar agora vê na corrente do rio

o destino da vida... O fim que o espera é o nada!


A selva onde nasceu, as planícies que amava,

o céu, a luz, o ardor da natureza brava,

tudo isto nunca mais, nunca mais há de ver.


Mas aonde vai, que marcha e tropeça e rasteja?

Que fruto derradeiro inda provar deseja?

Que migalha de vida inda ele quer colher?


                                           III


Eis fronteiro ao destino o bruto moribundo.

Ao pé de uma cachoeira, o olhar embebe, aéreo,

além da água irisada. Onde está? Que mistério

o trouxe a este lugar de que não sabe o mundo?


Atravessa o caudal. Do outro lado, no fundo,

uma clareira se abre. Um templo? um cemitério?

O ar, grave e sepulcral como o de um monastério,

agita-se, ferindo o silêncio profundo.


Pára, hesita o elefante, entre brancas ossadas,

às centenas no chão. Fraqueja, desfalece,

já sentindo na fronte o anélito do fim.


E sereno, fechando as órbitas vidradas,

pesadamente cai no solo, que estremece,

entre arcos de granito e presas de marfim!


(1953)



AS CIGARRAS ESTÃO CANTANDO NOVAMENTE


As cigarras estão cantando novamente.

E eu saí para ouvir o canto das cigarras...

Uma aqui, outra ali, monótonas, bizarras,

zinem, fremem assim melancolicamente

como folhas caindo à luz frouxa do poente.


Hoje a tarde está límpida e suave,

da leveza pagã de uma aquarela...

Uma cigarra geme uma nota mais grave.

E uma folha amarela

inexplicável

rasga verticalmente o quadro da janela.


O mar, imperturbável,

beijando longamente a costa atlântica,

dança, plácido, ao som de uma canção romântica

trazida pela mão sonâmbula da brisa.

E, aos murmúrios que vêm da profundeza oceânica,

a tarde agonizante se eletriza.


De repente,

numa fúria satânica,

um grito de volúpia estremece a atmosfera,

como se a maldição de uma cratera

desabasse na calma do crepúsculo!...


Mas a angústia passou, efêmera e nervosa,

como passa a poesia de uma estrela cadente.


Numa agonia vagarosa

a tarde vai morrendo. Um pontinho minúsculo

rompe as nuvens. Depois, languidamernte,

milhões de estrelas jorram no infinito.


Uma última cigarra, impertinentemente,

ensaia ainda um fretenir aflito.


E eu, que vim para ouvir o canto das cigarras

monótonas, bizarras,

volto ouvindo o esplendor de uma orquestra divina,

que aos poucos vai morrendo em trêmula surdina...


(1955)



O TOCADOR DE REALEJO


De repente

melodia estranha avassalou meus ouvidos

como descida dos céus.

Olhei em volta, num deslumbramento.

Era a primeira vez que via um realejo.

E toda a rua se maravilhou

e crianças surgiram não se sabe donde

e o céu desceu à terra

e o mundo parecia salvo!

O macaquinho em cima do instrumento fazia piruetas, sério,

cônscio de seu papel na alegria geral.

Homens satisfaziam-lhe o pires estendido.

Mulheres tagarelavam e crianças apontavam sorridentes com o dedo.

A multidão se dispersou lentamente

sem que ninguém notasse o velhinho de barbas brancas tocando a

manivela.


                                                                                                                               (1956)




LABIRINTO


Nem com os não merecer não nos perdera.

E, pelos possuir sem merecer,

as mesmas penas sofro que sofrera

por, outrora, querê-los e os não ter.


Ah! quem tal turvamento me entendera!

Em pranto, sinto, sem o compreender,

que eles são velas me esvaindo em cera,

velas em cuja luz arde o meu ser.


Penso que vou morrer, que o sol me apaga.

Olho-os, e ferem-me as pupilas deles;

beijo-os, e, então, sonegam-me o calor.


Não profundemos mais tão funda chaga!

E, pois que tanto mal me fazem eles,

devolvo-te os teus olhos, meu amor.


(1957)



   TROVA


Vida melhor não existe

que a das cigarras: à toa,

cantando se a vida é triste,

cantando se a vida é boa.


                                                (1963)




II — ALGUNS POEMAS SOBRE POESIA



              GÊNESIS


Fruto de estranho sonambulismo,

grave e sombria como um altar,

minha poesia nasce do abismo

onde em desmaios, enquanto cismo,

brilham suaves lendas de luar...


Nasce do fundo leito dos bosques

onde negrejam sombras de amor;

da água da fonte trêmula e triste

que se destila silêncio e flor.


Nasce da névoa deslumbradora,

do encantamento das ilusões;

do indecifrável poço da angústia,

cheio de rubras aparições.


Nasce do abismo desses teus olhos,

lagos profundos a palpitar,

onde em desmaios, palidamente,

cantam suaves lendas de luar...


(1955)



       TORRE DE BABEL


A noite desceu, bruta e simples

em sua beleza selvagem. 

A noite caiu como um fruto,

que o homem, faminto, comeu.


Noite estrelas, lua nua,

rua

pálida à luz da lâmpada sombria,

noite caixa-de-segredos,

noite!


Eu não descanso em ti, que és a semente,

descansarei à sombra da árvore alta.


Noite do albor da adolescência, que

foste a minha primeira namorada,

amo-te como se ama a um passarinho morto.


Noite oceano, olhos da amada,

nunca me esquecerei de teu deslumbramento,

que tanto é bela no teu rosto a vida!


Tinha uma pedra no caminho, atirei

no céu — estrela virou.


Cai, noite, cai, doce fruito,

o homem faminto te espera.


(1958)



     FÁCIL


Digo: Na remansosa

tarde, expira uma rosa

e pende o cálix, grácil..

Digo-o porque é mais fácil

do que dizer: No dia

sem glória e sem poesia

feito em trevas sem nome,

morre um povo de fome.


(1962)


          BABÉLICA


Falo várias línguas

e não me entendo.

Quanto aprontarei

meu próprio instrumento?

Falo várias línguas,

toldas elas mal:

CDA, Bandeira e

—pecado capital—

Castro Alves, Bilac,

etc. e tal.

Por mais que me explique,

não me justifico.

Podia, por desfastio,

inventar o Concretismo.

Mas já foi inventado

e arquivado. Me

restaria agora

buscar a receita

(ah, mas é mais fácil

esperar que terceiros)

pra desta babélica

convergência de outros

que é (m)eu,

cozinhando-a ao ponto,

tirar o eu multívoco

e uno, estranhamente

próprio, que me/eu fosse.


                                                          (1963)



                                                   

                               TANGENTE


No Mar Encoberto

       p l á c i d o

idéiaemoção (palavra) =

          a       c     (s)

      b’      r      o

cego(s) na superfície. Nas

entrepalavras verde-

(rasgada agora crespa)

-lucila a água fluidíssima.

Sobrejacente a

nave navega, nada.


                                                                (1966)



  TELEX


A Rumen Stoyanov


A poesia é a fonte em que ativamos a sede.

A poesia é o alimento que impede a saciedade.

A poesia é o espinho que nos protege da flor.

Mas a poesia é flor, ou promessa de flor.

A poesia é o Nada nos-criador que modulamos.

A poesia é a Rosa que inventamos prévia.

A poesia não é a rede, nem o mar, mas o lançar da rede ao mar.

A poesia é o plágio do não visto

Atenção:

                       a poesia é uma explosão controlada.


                                                                                                                                             (1973)



MULTÍMODA


Não apenas de cálculo se nutre,

nem somente de música, a Poesia.

Nem é ela o noturno, o tetro abutre

a tripudiar nas podridões do dia.


É maior que as campinas onde a lua,

cavalo branco e azul, selvagem nitre;

mais do que amor medrando em pedra nua,

sonho de flor na crosta de salitre.


Tudo cabe no poema — o claro, o escuro,

o cinza, afinidades, dispersão,

fúrias, mares, exílios, natureza.


Que não visa a Poesia ao belo puro,

nem à pura emoção, mas à emoção

transfigurada em timbres de beleza.


(1977)



III — LIVRE ESCOLHA



         OLHOS


De repente descubro

a lavada beleza de teus olhos:

(entre mim e o sono,

trazes um sol nos lábios

e nos seios Vênus)

teus olhos são como céus que choveram.


(1959)



INVENÇÃO DA NOITE


Deste silêncio e desta treva

construo a minha noite

particular e intransferível.

Não preciso inventar as estrelas,

elas nascem e brilham por si mesmas.

E à meia-noite uma lua triste

levanta a cara de prata no horizonte

e verte nos meus olhos um choro, um frio.


(1959)



CELACANTO


Nadando em costas d’África

Fruía o Celacanto

Emissário do outrora

O seu quinhão de pranto

No sal que imita a lágrima

Das águas no acalanto.


                        Talvez último príncipe

                        De extinta dinastia

                        Em seus rudes sentidos

                        A solidão doía

                        Gritava o alto silêncio

                        Da profundeza fria.


Do seu mundo apartado

Por muitos milhões de anos

Só — atual e pré-histórico

Assombrando os oceanos

Que mistérios guardava

Nos seus pobres arcanos?


                        Na viuvez atônita

                        Tu Celacanto corres

                        De ti e contra ti

                        Que de lembrar te morres

                        E que em tua orfandade

                        De ninguém te socorres.


Tosco irmão Celacanto

Em solitário nado

Brasão de sonho em fuga

Em campo blau plantado

É verde o teu enigma!

E eu te decifro e calo.


(1960)



REGRESSO


Viver é um desterrar-se

do Limbo, do Nada,

do Onde-não-se-Sabe.


Convivemos o exílio

cordatos, ferozes,

tolas rãs no lago,


esquecidos, vagos,

saudosos às vezes

do que éramos-nada.


Curta circunviagem,

esvai-se a vida,

                           trêmulo

peixe no mármore.


(1961)



(A)MAR(O)


Em março o mar soletra

sol e ar e luar.

E o pescador espera,

a cismar,

que das espumargênteas

vagalínguas a ondear

saia a palavra peixe.

E põe-se a piscicar,

de anzol, tarrafa, rede,

arpão — o mar.

Tempera-se a salina

escuma na carícia

doce do ar.

Chispam gaivotas-hifens

a mergulhar,

relâmpagos de união

entre ar e mar.

E o pescador espera.

O mar tostou-lhe a cara,

pôs-lhe vagas no olhar

e na pele. Sua alma

tem um fundo de sal.

Mas deu-lhe o mar um vago

íntimo marulhar

que em março, abril, desmaios

de amor lhe dá.

E essa amável magia

é que o faz esperar,

de janeiro a dezembro,

no seu destino claro:

amar o mar amaro.


                                                   (1963)



                  RAÍZES


À noite elaboramos nossa essência

(que importa se esvaneça na alvorada?):

uma ânsia de fantástica existência

de oníricos fermentos insuflada.


A noite é quem recolhe essa mais fluida

secreção da alma: o sonho. Ou, antes, a alma

em movimento, o ser, que, sendo, cuida

de fazer-se, recriar-se em louro e palma.


Alma, sonho. O criador sendo a criatura,

como argila que o próprio sopro anima!

Vive-se o dia para a noite escura

que do clarão do sonho se ilumina.


Pois o que somos sob o sol? — Raízes

de inda inconcretas florações felizes.


(1963)







MATEMOS A ROSA


A Eliezér Demenezes


A gripe me separa de minha família.

Casado — provisoriamente no regime de separação de corpos,

pai — provisoriamente frustrado, desterrado para o outro extremo da

casa,

durmo na sala, de quarentena.

Mas não durmo: penso no porvir de meus filhos.

Não o desejarei de rosas.

Não porque pense nos espinhos

¾ o Homem forma-se na luta

e muita vez os espinhos valem mais do que as rosas.

Mas porque as rosas têm hoje outra carga simbólica

e já nada diferem dos cogumelos.

Pais de todo o mundo, cuidado! aos nossos filhos

não lhes demos a cheirar destas rosas,

a comer destes cogumelos.

Sei que o meu apelo é patético,

sei que somos doidos brincando no jardim,

e talvez eu mesmo ajudasse a plantar a rosa,

a dar sombra e umidade ao cogumelo.

Mas os meus filhos estão chorando

e agarram a vida com ambas as mãos no seio materno.

Quisera lhes dar a justiça que não temos construído,

o amor que não temos regado.

Fujamos para o quintal!

fujamos para os vastos abandonados quintais

de nascituras hortas, pomares e roçados.

A rosa corre de mão em mão

                        ¾ quem quer a rosa?

                        ¾ quem não quer a rosa?

                        ¾ quem a despetala?

                        ¾ quem lhe aduba a terra?

Fujamos para o quintal

e esqueçamo-la,

entre abóboras, repolhos e pepinos,

esqueçamo-la,

sob os pimentões e o trigo

sepultemo-la com sua morte.

As batatas e as cebolas manam poesia.


(1963)







CRIANÇA CHORANDO


Para meu filho Anderson


Teu pranto abala as raízes da noite.

Tuas lágrimas reanimam a velha metáfora

e molham consteladamente o lençol.

Da obscuridade da tua fome

e do teu desamparo

clamas pelo dia, o teu dia,

quando fraldas e cueiros serão retratos esquecidos no álbum

e mamadeiras e chupetas te farão sorrir sobre outros berços.

Da noite do ventre materno saíste para a penumbra

e choras.

Tão pequeno e já franzes a testa.

Porventura sabes quanto pranto é preciso para fazer-se um homem

e te constróis impacientemente.


(1963)



MINHA FILHA


Para a Marília


Minha filha, tudo em ti é pureza,

mesmo o que em nós nos lembra

o charco original.

Merecias um madrigal,

não um poema lírico-triste,

cheio de vã filosofia.

Por ti, devera eu reencontrar a inocência.

Mas como ser inocente e lúcido?

Não, hoje não escrevo o teu poema.

Olho-te, avaro: meu amor é um lago

incomunicativo.

Te pego ao colo. Choras.

Mudo-te as fraldas e adoro-te em silêncio.


(1963)




SEMÂNTICA


As palavras morrem,

virgens, de usura,

Fartura­ —

as palavras

finam-se de desuso.


As palavras desviam-se,

mudam de órbita

                        Democracia

as palavras, satélites

forçados a novos planetas.


As palavras ocam-se,

deslembrados signos

— Paz, Amor

por onde o pensamento,

como um óleo, vaza.


As palavras gastam-se,

oxidam-se de malícia e asco.

— Liberdade! Liberdade!

As palavras.


(1965)



PLANALTO


§          O mar é um grande pulso que lateja.

O planalto é um mar de vagas imobilizadas na diástole,

e o pulso anula-se na tensão áspera da pele.


§          Gritos mineralizados. O tempo

            lapida os cristais fendidos do silêncio.

            E das fissuras mana (imperceptível)

            uma saudade marinha.


§          Esmagado espanto vegetal. Pássaros

            nadam entre as algas. Seres

            estranhos

            deslizam no fundo. Restos.


§          O Homem, navegador crispado,

            vem sulcar estas águas

            coaguladas. Decifra na face

            do planalto (memória

            de mar petrificada)

            seu arcano, e semeia-lhe

            arquipélagos.


§          Sobre as vagas imóveis

            um vivo mar agita-se.


(1967)




DESCOBRIMENTO  


Eu, navegador

caótico,

sem carta de marear,

escassa mão no timão, quase sem leme,

igualmente desassistido das poéticas palavras

portulano, astrolábio,

e cuja invisível bússola

nem sempre funciona,

eu, marujo sóbrio

mas entretanto bêbedo de sereias impossíveis,

desta nau que os ventos compelem

—contra toda ânsia de porto

e embora me ache às vezes capitão de ventos—,

nesta longa derrota, eu,

após Circes de circo e calmarias de assexuadas sereias resserenas,

desprezadas duzentas Índias ocidentais e orientais, Brasis de

espanto, Antártidas de olvido,

nesta longa derrota, eu,

vencidas onze mil solidões de sono e éter,

eu, navegador, bastou-me

erguer os olhos

e te amo

                 :  Astros à vista! —

um céu sem céu,

luar de seios, ástrea

carnação nas faces, onde os olhos

são estrelas maiores,

nuvens de asteróides, anéis de Saturno, auroras

boreais, e um sol

violento,

                    rubra central da vida,

: — sim, e, oh, eu,

navegador, meu caos

organizo,

e subo e, sem vislumbre

de queda,

para o encontro

desces

                (âncoras! âncoras!)


E chanto-te o terrestre

padrão nos astros êxules da carne.


(1972)





O PÁSSARO NO AQUÁRIO


                                   §


Era um ponto no aquário.

Era uma escama aberta

no verde dúbio da água. Era uma estrela

mínima em céus de queda.

Era um frêmito, um ritmo,

um verso regressivo à origem, nada,

um sopro extinto, inda outra vez soprado

por sol de oblívio, escuro.


O pássaro no aquário

solfejava em silêncio um sol futuro.


§§                                 


E eram guelras na escuma, e os olhos, algo

como um pranto na areia, entre algas, planctos,

como um pranto chorado em meio a lágrimas

retidas no olho inexistente. E em breve

eram garras na terra, a dura guerra,

o mar perdido e o espaço ausente, ausente.


                                   §§§


Garras, e a crua guerra.

Barro de espanto e dor no descampado

entre o sêmen do sonho e a fronde ao vento.

Mas o dó, mas o espanto,

a dor e seu invento:

um sol menor no peito;

domado, um lá na plúmea

escama distendida em ala urgente.


E era um pássaro na alva de escarlata,

cantando no alto a ária de orvalho e prata!


(1972)


NOTA

            “Trova” está em ­Trovadores do Brasil­­, de Aparício Fernandes (Rio de Janeiro, Editora Minerva, 19697); “Invenção da Noite”, “Raízes”, “Matemos a Rosa”, “Criança Chorando” e “Minha Filha” integram Altiplano e Outros Poemas (Brasília, Ebrasa / INL, 1971); “(A)mar(o)” e “Celacanto” figuram em Marvário (Clube de Poesia de Brasília, 1976); “Torre de Babel”, “Olhos”, “Regresso”, em Incomunicação (Belo Horizonte, Incomunicação / INL, 1977); “Semântica”, em Exercícios de Homem (Brasília, 1978); “Multímoda” (e)[, “Telex”,] “Planalto” [e “Descobrimento”], em Cronoscópio (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira / INL, 1983); “O Pássaro no Aquário”, no livro desse título (Brasília, 1990); “Labirinto”, em Dos Sonetos na Corda de Sol (Guararapes, 1999); os demais permanecem inéditos em livro.


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