Anderson Braga Horta
In: Testemunho & Participação: Ensaio e
Crítica Literária.
Thesaurus, Brasília, 2005.
Palestra pronunciada na Associação
Nacional de Escritores, Brasília, em 6.10.1998
“Lutar com palavras é a luta mais vã”, diz
Carlos Drummond de Andrade num de seus mais prestigiosos e belos metapoemas (“O
Lutador”, de José). Começo com a
citação ilustre, não para sugerir impossíveis comparações, mas para lembrar que
nem só os poetas de menor porte suam a pena para agarrar a poesia. Assumindo o
risco de exagerar, diria que suam, isto é, trabalham, principalmente os
grandes. Não que dispensem eles a inspiração, ou não acredite eu nessa quimera.
Pelo contrário, para mim, a inspiração é fundamental. Só que dificilmente é
bastante. O vero cultor da palavra trabalha esforçadamente a dádiva da
inspiração, a fim de transformar o lampejo em peça inteiriça, que não se limite
a sugerir suas potencialidades. Atribui-se a Samuel Johnson a afirmação: “O que
é escrito sem esforço é geralmente lido sem prazer.” Escrever é cortar
palavras, dizem outros autores, como o nosso Marques Rebelo, assim enfocando um
aspecto particular dessa luta. Os que se contentam de escrever como falam,
pontificava Buffon, no seu famoso Discurso
sobre o Estilo, “ainda que falem muito bem, escrevem mal”.
Epigramaticamente, como tão bem o sabia fazer, brincava a sério Mário Quintana:
“O estilo é uma dificuldade de expressão.” Já que falei em Quintana, e para não
deixar dúvida quanto ao sentido do trabalho ou da luta do poeta, encerro estas
citações com outra jóia do Caderno H:
“A beleza de um verso não está no que diz, mas no poder encantatório das
palavras que diz: um verso é uma fórmula mágica.”
“No entanto lutamos mal rompe a manhã”...
Entrevistado, para o Suplemento Literário
do Minas Gerais, por Carlos Roberto Pellegrino (edição de 11 de março de
1970) e por Danilo Gomes (27 de novembro de 1976; entrevista reproduzida por
Danilo no 1.º volume de seu Escritores
Brasileiros ao Vivo, de 1979), consignei o que me parece definidor do meu
processo de criação. Ampliei-o em entrevista a João Carlos Taveira (revista Literatura, junho de 1996), da qual
transcrevo o trecho correspondente:
“O poema nasce quando quer. O ritmo, a idéia,
a imagem, às vezes todo um verso, a semente do poema se oferece de improviso.
Em geral é algo muito vago, uma nebulosa que gira na mente do poeta; mas pode
ser o verso inicial, como pode ser o fecho de um soneto. Daí para a realização
do poema vão algumas horas, ou dias, ou meses, e sempre muito trabalho. Quase
sempre: há poemas que se oferecem meio feitos.
Não será assim com todos. Mas é assim comigo.
Em minhas reflexões sobre o poético tenho
anotado que o poeta joga com dois elementos: inspiração e construção.
O primeiro não se manifesta sem o segundo — seria como uma alma sem corpo. Há,
todavia, poetas cerebrais que afirmam prescindir do que chamo inspiração — o
gérmen dado, ou intuído. Mas até um poeta de
construção, orgulhosamente intelectual e antilírico por excelência, como
João Cabral de Melo Neto (‘Esta folha branca / me proscreve o sonho, / me
incita ao verso / nítido e preciso’, diz em ‘Psicologia da Composição’), parece
admitir, ainda que sob uma capa de ironia, algo dessa ordem, por exemplo, em ‘O
Último Poema’, de Agrestes, ao dizer:
‘Não sei quem me manda a poesia’.
Não dispenso a disciplina, o lavor, o rigor
na construção do poema. Mas, se não me vem espontânea a centelha, a fogueira
queima em falso... ou não queima. Tentei, há anos, a via intelectual autônoma:
todo dia me obrigava a escrever, a página branca diante dos olhos, movendo a
pena uma experiência já ponderável do fazer poético. Fazia. Mas o poema não
prestava. (Há, todavia, um truque para cutucar a inspiração, para provocar o
poema: suscitar o estado de poesia
pela leitura de poesia, pela audição de música, enfim, por qualquer maneira
adequada à sensibilidade do poeta; ou estudar o tema desejado, meditar sobre
ele e largá-lo, deixando que o subconsciente trabalhe, até emergir a fagulha
detonadora.)
Assim, apesar de toda a disciplina, todo o
formalismo que, com razão, me imputam, considero-me um poeta de inspiração.”
Seja como for, a luta do poeta com as
palavras é uma luta amorosa.
Quanto ao poema oferecido, a que aludi numa dessas linhas, há o exemplo extremo do
poema sonhado (Coleridge, Bandeira...) e o menos raro do que vem espontaneamente, já pronto, sem
trabalho, esforço ou luta aparente (sem andaimes
de Bilac). “Iludo-me às vezes, pressinto que a entrega se consumará. Já vejo
palavras em coro submisso, esta me ofertando seu velho calor, outra sua glória
feita de mistério .... Cerradas as portas, a luta prossegue nas ruas do sono.”
A luta, então, não será do poeta com as palavras, mas das palavras entre si...
Permitam-me ler um poema de minha autoria,
não por supostas virtudes estéticas, mas pelo que ele sugere dessa luta das e
com as palavras. Intitula-se “Apoese” e está em Altiplano e Outros Poemas:
APOESE
Mudas, incriadas,
jazem no possível
todas as palavras.
Nesse limbo inscrevem-se
invisivelmente
todos os poemas
ditos, por dizer,
mais os indizíveis.
Nesse limbo se amam,
bicam-se as palavras,
numa intimidade
por nós mal sonhada.
Relações repousam
insolicitadas,
frases adormecem
de desinvocadas,
e afinal se cruzam,
crispam-se, eriçadas
na ânsia de uma língua
boca, pena, gesto.
Nesse inesgotável
lago das palavras,
onde tudo encontra
seu signo prateado,
mergulhou o Homem
e pescou sofismas,
teses, xingamentos,
jogos, alguns poemas.
Infinito é o Sonho
que, irrealizado,
dorme em apoese
nesse obscuro lago.
Não fui um poeta
precoce. Minha luta com as palavras começou por volta dos 14 anos, em
Manhumirim, Minas Gerais, em cujo Colégio Pio XI cursava o 4.º ano ginasial. E
começou com uma fragorosa derrota. Arrebatado na espiral encantatória dos versos
de Castro Alves, desejei ser poeta. No que, por sinal, seguiria o exemplo dos
pais. E deitei mãos à obra. Sucedeu, porém, que, tendo tido, havia pouco,
minhas primeiras lições de versificação, e não as havendo assimilado
corretamente, acabei diante de um impasse: escritos os versos, punha-me a
conferir-lhes as sílabas; mas, ignorando a distinção entre sílaba métrica e
sílaba gramatical, não havia meio de acertar as exigências do ouvido com as
exigências da “teoria”. Contentei-me, por então, com uma prosa ritmada, de que
não guardo cópia, mas de que me ressoa ainda a frase inicial: “Da cachoeira
ouvia-se ao longe o rugido monótono”...
A propósito, em mais de uma ocasião, tenho
recordado um fato pitoresco. Meu professor de Português, competente embora, também
não havia assimilado a lição... Tinha a teoria na ponta da língua, mas, não
sendo poeta, faltava-lhe aquele “saber de experiências feito”; faltava-lhe, em
suma, a prática do poema. Em classe, apresentando exemplos de alexandrino,
escolheu, por azar, o primeiro verso do poema “A Boa Vista”, do vate das Espumas Flutuantes. E escandiu:
“E/ra u/ma/tar/de/tris/te,/mas/lím/pi/da
e/su/a/ve...”
Dava treze sílabas. Errado! (Faltava-lhe o
conhecimento do alexandrino arcaico, também dito espanhol.) Se forçasse a
sinérese em “suave”, quebraria o galho com um dodecassílabo sem cesura
francesa. Mas isso não lhe ocorreu. Ocorreu-lhe, sim, escandir o verso de trás
pra frente, e do expor passou incontinênti ao fazer:
“Su/a/ve e/lím/pi/da/mas/tris/te/tar/de u/ma
e/ra.”
Deu certo (esquecida a problemática cesura)!
(Perdoe o velho mestre, aqui anônimo, a
maldade repetida de lhe recordar, in
absentia, um minuto anedótico. De justiça é manifestar minha gratidão, e,
com cinco décadas de atraso, agora o faço, pelo devotamento, pela clareza e
pelo rigor de seu magistério, a que devo o abrir de minha até então obnubilada
mente aos sóis de nossa língua.)
A metrificar aprendi mesmo no ano seguinte,
na também mineira Leopoldina (de Augusto dos Anjos e de Miguel Torga), onde cursei
o Clássico. Enfim compreendida a lição, tentei logo um soneto. Bem sucedido, ou
quase (em termos métricos...). Intitulei-o primeiro “Orvalho Celeste” e, em
seguida, “Orvalho Sideral”. Terão os amigos paciência de ouvi-lo?
ORVALHO CELESTE
No espaço...
em pranto estava o firmamento.
Os
astros... eram lágrimas ardentes,
que
gotejavam pelas faces quentes
do
Universo. Este gemia: “Eu lamento
aquela
flor tão bela, solta ao vento,
açoitadas
as pétalas frementes
pelas
carícias vis de vis serpentes,
beijadas
pelo solo lamacento.”
E
era grande, tão grande a sua dor
que,
do infinito, as lágrimas caindo,
no
límpido regaço iam da flor
depositar-se (oh! símb’lo de ternura!)...
seus
sofrimentos, mágoas mil carpindo,
deixando-lhe
no seio a jóia pura.
15 de maio do ano santo de 1950. Quase meio
século. Mas deixemos de lado o tempo, que não nos deixa. Quero aproveitar essa
canhestra composição, feita mentalmente, num banco de jardim, e só depois
passada para o papel (do que não fiz um hábito), para lhes dar o primeiro
exemplo meu de transpiração em cima da inspiração. Fiz-lhe uns retoques, logo
que me senti com mais cancha, e nessa versão um pouco menos rude peço permissão
para redizê-la:
ORVALHO SIDERAL
No
espaço – em pranto estuava o firmamento.
Os astros
– eram lágrimas ardentes
que
gotejavam pelas faces quentes
do
Universo. Era do éter o lamento
por
uma flor singela solta ao vento,
açoitadas
as pétalas frementes
pelas
carícias de cruéis serpentes,
beijadas
pelo solo lamacento.
E
era tão grande e bela a etérea dor
que
as estrelas, rolando-se do Infindo,
a
límpida corola iam da flor
buscar
na Terra, e –oh! cimos de ternura!–
iam
as lágrimas do céu, caindo,
brilhar
na flor qual outra estrela pura!
Falei em sonetos iniciados pelo último verso.
É o caso dos que fiz a partir das onze chaves de ouro sugeridas por Guilherme
de Almeida (diversos poetas aceitaram o desafio, de que alguns se saíram bem,
entre estes o nosso Henriques do Cerro Azul). Mas vou preferir outra
ilustração. O poema “No Horto”, de 1959, incluído em Incomunicação, tinha, originalmente, no fim da primeira estrofe,
este verso: “Dentro do coração somos todos românticos.” Era um terceto, assim:
Meu
coração espera as oliveiras
e os
pães e os peixes do milagre.
(Dentro
do coração somos todos românticos.)
O poeta amigo Deodato Rivera (irmão do
recém-editado e já tão festejado tradutor de poesia José Jeronymo) tanto
espinafrou o indigitado verso, tachando-o de explicativo e, pois, expletivo, ou
melhor, inútil, portanto pernicioso, que acabei cortando-o. Concordo que
naquele contexto não fazia falta. Mas continuei gostando do verso. Tanto que,
trinta e três anos depois, o engastei num soneto de alexandrinos mistos,
parnasianos e arcaicos. Ei-lo:
PULSO
—Qual
no espaço exterior, no antro de nossas mentes
há
momentos também de sóis deliqüescentes,
de
etéreos candelabros num puro azul sem rastros!
—Somos
feitos da mesma seiva de luz dos astros.
—Oh,
a negra cabeça da noite rola do alto...
Sermos
também lastrados de queda e sobressalto...
—O
pulso que na esfera mais mínima palpita
é o
mesmo que lateja na galáxia infinita.
—Mas
eu sinto que o peito uma ânsia azul me invade
de
ser somente luz, acima, imensidade!
Sinto
que há dentro em mim um eu que me transcende!
Sobe
o mar interior, e no abismo que ascende
Algo
vem se formando como espumas e cânticos!
—Dentro
do coração somos todos românticos.
Já que, insensivelmente, fui transformando
este depoimento num buquê de curiosidades, permitam-me ainda outras. Em 1954
escrevi o seguinte poema:
MANHÃ
DENTRO DA NOITE
Vontade
de voar para lá do horizonte,
sentir
a força cósmica em meu peito,
nas
vastas solidões intermundiais.
Vontade
de sofrer toda a dor do universo,
para
depois cristalizar num verso
as
transfigurações universais.
Deve
ser belo o azul naquela intimidade
que
as almas gêmeas entrelaça.
Deve
ser belo
sentir,
flutuando, a melodia eterna
e a
suprema visão do infinito,
sorrindo
na
transcendente afirmação do Ser!
Ah,
pudesse eu diluir-me, espiritualizado,
no
mistério do espaço constelado!
Tenho
medo, porém... A frialdade etérea
havia
de gelar-me as canções na garganta.
E o
universo, oprimindo-me o peito sombrio,
mataria
a ilusão de asas partidas
que
dentro de meu ser murmura e canta.
Tenho
medo, e soluço.
O
Cruzeiro do Sul ironiza, de bruços,
minha
aflição profundamente triste.
O
mundo não existe,
nesta
hora longa, ao meu olhar de louco...
E eu
vou compreendendo, pouco a pouco,
a
beleza sublime de ser triste
e a
glória incompreensível de ser louco!
Em 1997, reaproveito a
inspiração desse poema solto e construo este outro:
ENDECHA
Ânsia
louca de voar para além do imperfeito,
abrir
à força cósmica o meu peito
nas
vastas solidões intermundiais!
Ânsia
triste de haurir toda a dor do Universo
e
–semideus!– cristalizar num verso
as
transfigurações universais!
Ao
invés, o horizonte atro me fecha.
Velha,
a planger-se, a Soluçante Endecha
chora-me
a mim, como invertida fonte.
Tolhe-me
o novo, em tudo oculto, o velho.
Outro
éter! outra luz! outro evangelho!
.......................................................................
Vontade
de voar para lá do horizonte...
Mais se vive, mais se
muda de pele, mais se é o mesmo... Não obstante, transpirando sobre a
inspiração de quarenta e três anos, de certo modo, produzi novo artefato.
Melhor? Quantas vezes “corrigi” um poema para pior... Sorte é percebê-lo. Neste
caso, porém, talvez pudéssemos cogitar de inspiração cumulativa: o fruto de uma
inspiração inspirando um derivado...
Seria de esperar que um poeta, falando de sua arte, selecionasse para
exemplificá-la os seus melhores poemas. Aqui, faço quase o contrário... Rendendo-me
de vez ao pitoresco, lembro um soneto hendecassílabo, feito a duas mãos, à mesa
de um bar, com o Deodato Rivera. Batizamo-lo de “Soneto Horrível”: “Pela noite
austera badalando triste, / chora ao longe um sino, lívido ao luar. / Quanta
nostalgia, quanta mágoa existe / neste seu plangente, negro badalar.” Tão
horrendo, mesmo, que a tempo o devolvo ao silêncio do esquecimento. Seja-nos
perdoado o delito estudantil (estávamos em 1953, em Leopoldina).
Ilustrativos, também, da tensão entre
inspiração e trabalho podem ser os centões, poemas feitos mediante a
recombinação de versos alheios, caso em que o segundo pólo quase se resume em
transpiração...
Retomo a deixa da “Endecha” para recordar
como, de tão outra maneira, não um poema, porém um punhado de poemas me serviu
de espoleta para a deflagração do livro que julgo o mais bem construído dentre
os meus. Em 1964-65, revoltado com a Redentora,
escrevi uma série de agressivos poemas de protesto, em torno dos quais e a
partir dos quais acabei ideando os Exercícios
de Homem. O livro foi crescendo (chegou a ter cem ou mais composições) e, à
medida que crescia, organizando-se e universalizando-se, e, à medida que se
organizava, minguando em quantidade, de modo que a versão final (reduzida a
cinqüenta e uma peças) funciona —assim o creio, sem maiores pretensões— como um
só poema, uma espécie de epopéia moderna, uma espécie de epopéia do espírito.
Dessa versão definitiva, pelo que tinham de datado, de circunstancial, de mais
perecível, portanto, foram alijados exatamente os poemas-estopim, ou
poemas-gatilho, em torno de vinte (além de outros que desloquei para o Cronoscópio). Serviram de catalisador, e
foram sacrificados. Sob o rótulo Poemas
Escritos com Raiva, ou simplesmente Poemas
com Raiva, pretendo publicá-los na reunião de livros intitulada Fragmentos da Paixão.
Minha poesia se vale, indiferentemente, do
verso medido e do verso livre, das formas fixas e das imprevisíveis, do antigo
e do moderno. Como, porém, o tempo que nos resta não comporta outras leituras,
escolho para encerrar esta conversa um poema recente, vazado na forma do que
deu início à minha aventura poética: um soneto decassílabo às antigas. Leio:
LASCIVA EMBRIAGUEZ
Lasciva
embriaguez da poesia,
da
música e do amor! Uma só cousa
sois
vós para quem quer, para quem ousa
o
mergulho na vaga fugidia
que
é o impulso da vida. Fugidia
mas
constante, um arder que não repousa,
que
desconhece o falso estar da lousa,
que
funde o ser na sempiterna via.
Ó
divina embriaguez, toma-me os passos
e
deixa-me sonhar pelos espaços
do
Ser, indiferente à realeza
da
fortuna e da glória, inteiro e salvo
de
toda circunstância, que é teu alvo
o
coração fremente da Beleza!
Obrigado, amigos.
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