No dia 7 de novembro de 2014, no Anfiteatro Luiz Raphael do Museu Espaço dos Anjos, o Coral São Gregório Magno abriu a noite de Homenagens pelo Centenário de Morte de Augusto dos Anjos. Em seguida foi apresentado o trabalho Augusto dos Anjos visto por alguns biógrafos e pensadores, preparado pelos acadêmicos José Luiz Machado Rodrigues e Nilza Cantoni. O encerramento da noite esteve a cargo da Secretaria Municipal de Cultura, Esporte, Lazer e Turismo, com o lançamento do Calendário 2015 com motivos relativos a Augusto dos Anjos e sua obra, além de informações históricas de alguns antigos logradouros públicos do centro de Leopoldina.
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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
segunda-feira, 26 de janeiro de 2015
Roteiro Poético, Roteiro de Vida
Anderson Braga Horta
In: Testemunho & Participação: Ensaio e Crítica Literária.
Thesaurus, Brasília, 2005.
Originariamente, notas
para um encontro
com estudantes da UnB,
em 8.10.1980
É
bom para um poeta, no meio do caminho, parar um pouco e rever alguns de seus
passos; o que tem pensado e o que tem realizado em matéria de poesia. É bom para o investigador do fenômeno poético
ouvir o depoimento dos poetas, mesmo —e talvez principalmente, porque não
contaminados de parti pris— quando
lhes falte um sólido embasamento teórico.
É bom seja colhido o testemunho tanto dos poetas maiores quanto dos
menores, ainda que apenas para confirmação do contraste. Por último, e à parte toda vã filosofia, a
verdade é que, a esta altura da vida, é bom lembrar... E é isto que faço, para atender ao convite
amigo e honroso de Heitor Martins e a pretexto de dizer qualquer coisa, perante
estudiosos da matéria, sobre minha experiência no campo da poesia. Pretendo fazê-lo resumidamente, como convém,
e aproveitando fatos de minhas circunstâncias pessoais para recolocar em debate
alguns problemas da criação literária.
Lanço-os, bem sei, condicionados pela minha ótica; assim, deve esta ser
igualmente objeto do debate.
Os Versos mais Tristes do Mundo
O primeiro
contacto que me lembra ter tido com a poesia foi a leitura do “Pequenino
Morto”, de Vicente de Carvalho, em Vila Boa de Goiás, aí pelos meus oito
anos. Chorei como criança que era.
Hoje,
relendo o poema, percebo como o poeta conseguiu, com extrema habilidade, dar ao
hendecassílabo junqueiriano a tristeza exigida pelo assunto (à parte o fato de
o assunto infundir sua tristeza no verso utilizado). Ouçamos a estrofe inicial:
Tange
o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro... tão
desconsolado...
No caixão dourado, como em
berço de ouro,
Pequenino, levam-te
dormindo... Acorda!
Olha que te levam para o
mesmo lado
De onde o sino tange numa
voz de choro...
Pequenino, acorda!
Comparemos
os versos do poeta santista com estes hendecassílabos de Guerra Junqueiro:
Vêm sanguinolentos gritos
moribundos
Das soturnidades torvas do
horizonte!
Ou com estes, também do autor de Os Simples:
Ai,
há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso,
carinhoso lar!...
Foi há vinte?... há
trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me
estás fitando,
Canta-me cantigas para me
eu lembrar!...
A
estrutura é a mesma em todos esses versos —tônicas na 5.ª e, naturalmente, na
11.ª sílaba—, e notabilizou-a o bardo lusitano.
Quase sempre, os versos dos poemas citados têm acentos secundários na
3.ª e na 9.ª Não obstante, o andamento
dos de Junqueiro é mais rápido que o dos de Vicente de Carvalho. Por quê? Tão-só pela influência do
assunto? Haverá outros elementos
influidores: a dimensão, a estrutura e o timbre dos vocábulos, o sistema
rímico, a estrofação...
Lugar da Prosa
Li muita prosa também, desde Vila Boa, mas
principalmente em Goiânia, onde prestei o exame de admissão e freqüentei o
primeiro ano do Ginásio. Recordo uma página de Humberto de Campos que me
entristeceu quase tanto quanto o poema de Vicente de Carvalho; nela, o
contista-cronista narra, na primeira pessoa, episódio em que se confessa autor
de um furto, na verdade um pequenino furto, quando menino. Fiquei consternado.
Da mesma época foi o conhecimento de um livro, tradução do inglês, decerto
(acredito ter visto, bem mais tarde, um filme nele baseado), e cujo título
seria O Homem Miraculoso (ou O Homem que Fazia Milagres?);
faltavam-lhe capa e folha de rosto, não fiquei sabendo quem era o autor; mas
foi uma leitura iniciadora. E que dizer dum livreco, também sem capa,
intitulado A Boceta de Pandora? Era muito criança, mas tinha já algumas
iniciações, e fiquei aturdido e indignado com a possibilidade de se publicar e
distribuir, supostamente para a infância, literatura desse desavergonhamento.
Em Goiânia, li tudo
o que pude encontrar sob os olhos. De Nietzsche (Ecce Homo, Assim
Falava Zaratustra) a Érico Veríssimo (Clarissa, Gato Preto em
Campo de Neve) e desses a... Suzana Flag. Minha Mãe pegou-me (até porque
não o fazia escondido) lendo Meu Destino É Pecar, de um Nélson Rodrigues
encapuzado no pseudônimo feminino. O romance era tão excitante que as últimas
páginas vinham com um lacre. Mamãe teve a sabedoria de não me proibir a
continuação. Apenas disse que não era literatura das mais indicadas para minha
idade, mas, já que eu estava mesmo a folhas tantas... (Como voou o século XX!
Poucas décadas depois, aquelas páginas proibidas poderiam ser
consideradas literatura para mocinhas...)
Quanto à literatura
própria ou impropriamente infantil, de tudo o que me veio às mãos, incluídas as
grandes obras de prestigiosa extração européia, nada se comparava à de Monteiro
Lobato, que, pelo meu voto esclarecidíssimo de menino devorador de livros,
ficava ¾onde fica até
hoje¾ no ápice da
escala. (Tirante apenas as histórias que Mamãe, à beira de nosso leito, à
noite, em Goiás, improvisava para nós cinco.)
Falta mencionar as
histórias em quadrinhos. Lia tudo que era gibi, guri, globo juvenil mensal e o
mais que havia nas bancas. Por influência delas meti-me a desenhar. No pátio do
Dom Bosco e, mais tarde, em Manhumirim, na rua entre a casa de meus avós e o
Pio XI, distraído rabiscava na areia ou na poeira os meus heróis prediletos.
Tirei um zero em Matemática por debuxar em classe, e no caderno da matéria, uns
traços femininos. Cheguei mesmo a idear e desenhar uma historieta em quadrinhos
no estilo homérico das que lia...
Por que esta longa
digressão? Porque todas essas leituras me refinaram e enraizaram o hábito de
ler. E porque a poesia, afinal, não vive exclusivamente nos versos.
O Poeta Vulcânico
Segundo contacto
lembrado com a poesia: leitura do Tesouro da Juventude, em Manhumirim,
Minas Gerais (a partir de 1947). Então,
o grande impacto foi Castro Alves, especialmente pel’“O Navio Negreiro”, que,
de tanto ler, acabei decorando. Aqui, em
vez da tristeza do poema de Vicente, a euforia, o entusiasmo do moço baiano.
Comecei
a desejar ser poeta. Por imitação? Claro que sim. Meus Pais eram poetas. Castro Alves, conhecimento recente, me acenava
com um ideal de beleza que, aos poucos, me fui impondo por meta. E por aí já se vê que não era só
imitação; havia também um desejo de
realização. Realização no plano
espiritual, mais especificamente, no plano estético... sem falar no apelo
político-social que é uma das características da poesia de Castro Alves.
As Primeiras Tentativas
Quando me dispus
a tentar o poema, estava no 3.º ou 4.º ano ginasial do Colégio Pio XI, em
Manhumirim. Começava a estudar
versificação, e isso prejudicou os meus primeiros ensaios: não aprendera a diferença entre sílaba
gramatical e sílaba métrica; deste modo,
ainda que o poema agradasse ao ouvido, não se revelava uniforme à contagem das
sílabas, e eu então o violentava para “dar certo”. Não dava, o resultado tinha de ser
antimusical.
Guardo,
dessa época, episódio dos mais pitorescos, narrado, aliás, em um de meus
primeiros contos. Meu professor de
Português, um padre sisudo e, quanto posso avaliar retrospectivamente, bom
conhecedor do idioma, iniciava-nos nas técnicas da versificação. Tendo-nos explicado (tão bem quanto se
verá...) a ciência da escansão; tendo-nos apresentado o alexandrino, e
desvendado que se tratava de um verso de doze sílabas, passou à
exemplificação. Não foi feliz na
escolha: o verso “Era uma tarde triste,
mas límpida e suave...” (do poema “A Boa Vista”, de Castro Alves) revelou-se
refratário ao espartilho dodecassilábico.
Por mais que o mestre contasse e recontasse, o total dava treze
sílabas. Em desespero de causa, decidiu
contar de trás pra diante: “Su/a/ve
e/lím/pi/da/mas/tris/te/tar/de u/ma era”.
Deu
doze sílabas (“Ah! eu não disse?”).
De como a Geografia Pode Influir numa
Vocação
Concluído o
ginásio, meu Pai pôs-me num carro e rumamos para o Rio, onde deveria
matricular-me num colégio. Mas, passando
por Leopoldina, onde estudara, lembrou-se dos velhos tempos, da boa tradição do
Colégio Leopoldinense, e hesitou.
Lembrou-se também de que em Cataguases, cidade próxima, havia um colégio
moderno (pela arquitetura de Niemeyer, pelo sistema de internato com
apartamentos para dois ou três alunos, por um famoso painel de Portinari sobre
a Inconfidência — painel que, por sinal, esteve em exposição em Brasília, há
alguns anos, num dos salões do Congresso Nacional). Fomos a Cataguases. Acabei, porém, ficando em Leopoldina. Hão de ter pesado na decisão (que deveria ter
sido minha, mas que transferi, por não saber que opção tomar) as boas recordações
da juventude que a cidade provocava em meu Pai.
Não
sei que caminho teria tomado, se é que algum caminho haveria de tomar, quanto à
poesia, caso tivesse ido imediatamente para o Rio. A propósito da escolha entre Cataguases e
Leopoldina, devo lembrar que a primeira foi um centro cultural de vanguarda na
província de Minas (do que dava testemunho, desde logo, a modernidade do seu
colégio), sendo de relevância para o Modernismo mineiro o grupo congregado em
torno da revista Verde. Já Leopoldina era conservadora e, ainda nos
50, infensa ao Modernismo.
Assim,
na tranqüila cidade mineira que acolhe os ossos de Augusto dos Anjos, minha
iniciação se fez com fulcro no Romantismo-Parnasianismo-Simbolismo, sendo
Castro Alves e Bilac as duas influências avassaladoras dessa primeira fase, que
me marcou para toda a vida.
Aprendi
a metrificar.
Bom
ou mau?
(Antes
de continuar, preciso admitir, num parêntese, ser discutível pudesse a escolha
de colégio e cidade influir tão determinantemente em minhas opções estéticas. Como visto, o clima
romântico-parnasiano-simbolista estava em minha pré-formação, combinava com o
meu temperamento e com as inclinações que em mim já se revelavam.)
Tradição e Modernidade
O culto aos
valores tradicionais não é incompatível com a modernidade. É, antes, ao que me
parece, indispensável para um modernismo conseqüente, sabedor do que faz, e não
meramente iconoclasta.
Sobejamente
conhecida é a afirmação que podemos revestir nesta máxima: “É preciso conhecer
para romper” — aplicável especialmente à literatura e às artes. Modernismo e vanguarda não são sinônimos de
ignorância...
É,
aliás, a lição de Manuel Bandeira que o poeta, moderno embora, há de passar
pelo verso tradicional, de haurir destreza nas técnicas e estéticas dos
“clássicos” — isto é, dos grandes poetas do passado, qualquer que tenha sido a
sua escola (permitam-me usar a palavra, cuja radical exclusão do vocabulário da
crítica e da historiografia literária seria, creio, um equívoco e um
empobrecimento).
Quase
diria que, sem essa educação na arte antiga, grandes e inevitáveis prejuízos
terá o poeta. Mas tentarei ser coerente
na aversão ao radicalismo...
Houve
em nosso Modernismo poetas —dos maiores— insuficientemente versados na prática
daquela arte, e mesmo poetas incapazes de metrificar (seria o caso de Oswald de
Andrade). Em contrapartida, a maior parte dos nossos modernistas de categoria
superior foram ou são exímios versejadores, familiarizados com todas as
técnicas: Bandeira, Mário de Andrade,
Drummond, Cassiano Ricardo, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa,
Vinícius... João Cabral também o será, tendo sua versificação raízes antes
medievais do que renascentistas. Anote-se, ainda, que a Geração de 45,
capitaneada pelo nosso Domingos Carvalho da Silva, e com exemplos num Lêdo Ivo,
num Péricles Eugênio da Silva Ramos, adotou sempre atitude de não exclusão
entre o antigo e o moderno, sabedora de que este se nutre daquele, e de que a
veneração ao primeiro não é óbice à conquista do segundo — sendo-lhe, em geral,
condição.
Por Quê Poesia?
Ponho de novo a
questão: por quê poesia?
Adolescente,
senti-me fortemente chamado pela poesia.
Antecipei, há pouco, duas razões para isso: imitação e desejo de realização. Mas acho que poderia, deveria acrescentar
algo.
Sou
tentado a dizer que, surgidos inexplicavelmente em meu cerne, em minha alma, em
meu espírito, embalavam-me movimentos, vibrações que, se bem que inefáveis,
reclamavam expressão — uma exteriorização em forma que as reproduzisse por
aproximação, ou melhor, uma recriação, que em algumas organizações assume a
forma de música, em outras, uma forma plástica, e em mim assumiu a forma de
poesia. Isto, que a alguns pode soar
fantasioso, a mim me parece bem próximo da verdade — e se me mostro, aqui, um
tanto reticente é porque não sou capaz de levar às últimas conseqüências, isto
é, à origem, a análise do processo.
Há,
todavia, para o fenômeno poético, pelo menos outra explicação possível, e não
posso omiti-la. Tratar-se-ia de simples catarse, válvula de escape à pressão,
às vezes excessiva (principalmente na adolescência), de sentimentos de angústia
ou de frustração.
Ora,
a realidade é que não costumam ser encontrados na natureza os princípios puros,
isolados. A meu ver, todos os elementos
enunciados, e talvez ainda outros que no momento me escapem, estão na raiz do
fenômeno poético; não obstante, apenas
um o define: aquele movimento, aquela
vibração a que me referi — combinado, decerto, ao veículo de sua
exteriorização, ao corpo poemático, este sim, mais fácil de estudar; e que por isso mesmo, não raro, estudamos
como quem, para conhecer a estrutura do pássaro, o dissecasse, assim lhe
interrompendo o vôo e a vida. Corpo e alma, pois, que se manifestam juntos,
inseparáveis; conjunto, porém, de que a
inteligência pode extrair, destilar o princípio vital.
Esse
princípio, comum à literatura e às artes, é natural que o estudemos na sua
manifestação física, quer dizer, no seu corpo — plástico, musical, verbal.
Escamoteá-lo, para contornar a dificuldade, senão impossibilidade de o
rastrear, ou negá-lo, por prévia convicção filosófica, leva fatalmente a
distorções e necroses.
A
esse princípio se tem dado o nome de inspiração.
Presença de Minas
Voltemos
a Minas...
De
Leopoldina carrego, eternas, duas marcas. Uma, literária: a disciplina do verso, um certo universalismo
poético (e aqui, já que falo de poesia, tenho de deixar inscritos os nomes de
dois mestres — Geraldo de Vasconcellos Barcellos e Lydio Machado Bandeira de
Mello). A outra, vital: a das primeiras
sérias definições afetivas fora do âmbito familiar — amizades indeléveis, a me
ligar a outros jovens de então, professores, o povo, o próprio clima de uma
cidade para sempre viva e dourada na memória.
Quando,
ultimados os preparatórios, fui afinal para o Rio de Janeiro, levava na bagagem
grande número de poemas e variada experiência nas técnicas versíficas
predominantes até as vésperas do Modernismo (com este só me encontraria, de
verdade, em solo carioca). Ia, pois,
—permita-se ao insistente aprendiz recordar ainda uma vez o grande mestre—
iniciado na poesia e na vida.
Os Caminhos
A coletânea
improvisada sob o título Amostragem
Poética, de modo especial na primeira parte, “Balizas de um Caminho”,
sintetiza o roteiro seguido por minha poesia, dos inícios românticos ao
Modernismo. Nela deixo representadas
todas ou quase todas as fases.
Minhas
primeiras tentativas de poema resultaram em fracasso ou, no melhor dos casos,
em medíocre prosa ritmada, de que me lembra uma única frase: “Da cachoeira
ouvia-se ao longe o rugido monótono”... “Um Olhar”, de feição
romântico-simbolista, com evidente ascendência castro-alvina, foi o primeiro
poema bem-sucedido.
“Utopia”
mantém o tom romântico.
“Navegação”,
reescrito após 17 anos, soa-me parnasiano-simbolista.
A
leitura dos clássicos côa-se pelo tom e pela linguagem de “Dia Após Noite”.
Já
“O Cemitério de Elefantes” é nitidamente parnasiano.
“As
Cigarras Estão Cantando Novamente”, polimétrico, é um marco na difícil
transição para o verso livre, que já considero presente em “O Tocador de Realejo”.
Em
“Labirinto”, novamente, influência dos clássicos do idioma, desta vez com boa
dose de afetação.
Nossa
popular quadrinha setissilábica está representada em “Trova”.
Da
segunda parte, “Alguns Poemas sobre Poesia”,
“Gênesis” é ainda romântico, no sentido mais amplo da palavra; seus eneassílabos parecem-me devedores
daqueles outros, infinitamente maiores, d’A
Cinza das Horas, de Manuel Bandeira:
Eu faço versos como quem
chora
De desalento... de
desencanto...
Fecha
o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de
pranto ,
com aquele final
esplêndido:
—Eu faço versos como quem
morre.
“Fácil” exemplifica a fase violão-de-rua.
“Torre
de Babel” toma, adaptando-os ou não, quase todos os seus versos de outros
poetas.
Em “Babélica” e em “Tangente”, a presença do Concretismo,
criticamente considerado e livremente utilizado, não como imposição
vanguardeira, mas como uma caixa a mais de instrumentos expressivos. Em
“(A)mar(o)”, o título é uma construção sintética, em código, cujo desdobramento e decifração vêm no último
verso.
“Telex”
e “Multímoda” são duas meditações acerca do fenômeno poético, a primeira uma
composição em verso livre, a segunda um soneto decassilábico, ícones da medida velha e da medida nova que alternam, sem altercar, em minha poesia.
Finalmente,
na terceira parte, “Livre Escolha”, em que se confirma essa alternância, reúno
alguns poemas de minha preferência.
Submeto-os todos, bem como as observações que tenho avançado,
ao debate e à crítica.
Com
a palavra os amigos.
quinta-feira, 22 de janeiro de 2015
Fanzine, Música e Lançamento de Livro no Museu Espaço dos Anjos
As atividades do dia 31 de outubro começaram à tarde, com uma Oficina de Fanzine em que os participantes foram estimulados à produção com o tema Augusto dos Anjos. À noite, após a apresentação musical do Grupo Antique, foi a vez do acadêmico Elias Fajardo participar das homenagens através do lançamento de seu último livro - Belo com o Abismo.
Ao apresentar-se, Elias mencionou algumas passagens da trajetória de Luiz Raphael e seu profundo vínculo com Augusto dos Anjos.
Alguns trechos da fala do acadêmico:
Ao apresentar-se, Elias mencionou algumas passagens da trajetória de Luiz Raphael e seu profundo vínculo com Augusto dos Anjos.
Alguns trechos da fala do acadêmico:
Um dos apelidos de Luiz Raphael era justamente “o mordomo de Augusto”. Isto reflete o grande interesse que ele tinha pela obra e pela pessoa do poeta Augusto dos Anjos.
[...]
Depois de viver 9 anos no Rio, Luiz Raphael voltou para Leopoldina em 1972. Eram tempos difíceis aqueles, de ditadura militar e poucas perspectivas para o país. Mas ele resolveu transformar o limão numa limonada. Seu amor por esta cidade era tamanho que ele foi fundo na pintura, reconstituindo uma Leopoldina mais gentil e mais bela do que a que temos hoje.
[...]
Em 1983, criou o Espaço dos Anjos, nesta casa. E foi se tornando aos poucos uma figura ímpar, um centro de referência na memória e na vida cultural de Leopoldina. Ele escolheu a dedo esta casa para alugar, pois nele viveu e morreu o poeta paraibano, cujo centenário de morte se comemora este ano com justas homenagens. Por isto louvo esta iniciativa de louvar também o Raphael, cujo trabalho de formiguinha foi tão importante para que esta cidade não se esqueça do que ela foi e do que ela é.
[...]
A memória às vezes nos prega peças: ela pode nos fazer recordar bons e maus momentos e situações, mas pode também nos levar a esquecer. Daí meu apelo a todos vocês: não esqueçamos o Raphael e a sua dedicação à cultura e à vida social desta cidade. Se hoje estamos aqui neste centro cultural tão bem cuidado e que é uma referência na memória local, isto se deve ao trabalho pioneiro do Fael ou Izo, como era também chamado.
[...]
Lá estava ele: em festas de debutantes, decorando a cidade para o carnaval, pintando por encomenda as casas de muitos dos habitantes desta cidade, animando eventos escolares, fazendo piqueniques com os amigos na cachoeira de Piacatuba, desenhando e dando aula, comemorando a chegada da Primavera (nunca conheci ninguém, a não ser ele, que comemorasse a primavera). Se alguém quisesse se informar sobre o passado da cidade e da região, tinha um endereço certo no Espaço e nele uma figura sempre disposta a ajudar: o Raphael.
[...]
Neste momento em que sua memória, de alguma maneira, está sendo esquecida, pois “tudo passa, tudo finda, da dor mais forte à ilusão mais linda”, cabe a nós lembrar seu trabalho de décadas, muito pouco remunerado e muito valorizado por quem o conheceu de perto e por quem aprecia, como nós, esta cidade.
segunda-feira, 19 de janeiro de 2015
Poeta e Mestre de Poesia
Anderson Braga Horta
In: Testemunho
& Participação: Ensaio e Crítica Literária.
Thesaurus, Brasília,
2005
Geraldo
de Vasconcellos Barcellos – Para Elza
Rede
3 de Junho, Rio de Janeiro, 1996 – Prefácio
Quando cheguei a Leopoldina, em 1950, para fazer o Clássico, o Colégio
Leopoldinense vivia um de seus momentos de fastígio. Entre os mestres que, nos
próximos três anos, me dariam sua preciosa orientação contava-se, por exemplo,
o velho Joaquim Guedes Machado. Português, formado em Engenharia e em Direito,
musicista, era o arquifamoso professor de Matemática de quem meu Pai, que fôra
seu discípulo no mesmo educandário, lembrava histórias que ressaltavam, quase
sempre, o gênio um tanto forte... No meu tempo, esse gênio se abrandara. Em
minha lembrança, o que surge é o homem sensível, de notável agilidade mental,
atencioso para com o jovem que mergulhava, então, nas primícias voluptuosas de
uma torrencial produção poética. Outro europeu ali radicado, com o qual o
Machado se esquecia às vezes em longas conversas, era M. Rodolphe Gibrat, que
lecionava o Espanhol e sua língua de berço, o Francês. Hamil Adum, advogado e
escritor, dava aulas de Inglês, encantando a todos com sua vivacidade e sua
simpática facúndia. Oiliam José, poeta, historiador e ensaísta, mais tarde
eleito para a Academia Mineira de Letras, que ainda hoje abrilhanta,
singularizava-se pela seriedade, pelo comportamento quase monástico, pela voz
metálica, monocórdia, com que escandia meticulosamente as palavras. Dava-me a
impressão de poder ler os pensamentos da turma, que acompanhava em silêncio as
suas preleções. Extraordinária figura era, também, Lydio Machado Bandeira de
Mello, que pouco depois deixaria Leopoldina para lecionar Direito em Belo Horizonte (foi
professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais). Somam dezenas os
volumes de sua obra científica, filosófica, jurídica, teológica, da qual
destaco um título, que já naquela época mexia com a minha imaginação: Prova
Matemática da Existência de Deus.
Esses, alguns dos mais ilustres membros do corpo docente. Fora do
Colégio, porém, outras figuras nos atraíam: Haroldo Barreto, poeta boêmio, de
comportamento sui generis, com seu violino (por vezes uma corda só...) e
seus belos sonetos decassilábicos; René (filho da severa Prof.ª Regina Monteiro
de Castro, que dava Francês e Desenho para o Científico e o Ginásio), com sua
conversa inteligente e amiga, com sua companheira atenção para com nós outros,
adolescentes famintos de Saber e de Beleza; Murilo Monteiro de Castro, seu
irmão, mais arredio, afastado talvez por um halo misterioso de Poeta já
feito... De Murilo, que haveria de morrer cedo, afogado, recebi eu certa vez,
em seu gabinete odontológico, aonde acompanhava o amigo José Jeronymo Rivera,
minuciosa lição sobre a cesura medial do alexandrino ortodoxo.
Essa constelação invulgar lampejava num firmamento iluminado, ainda e
sempre, pela estrela magnífica de Augusto dos Anjos, que, professor também, na
Cidade consumira o período último de sua vida. (Ignorávamos, então, que outro
escritor de grande talento passara por lá, como aluno do Colégio: o tramontano
Adolfo Correia da Rocha, que se imortalizaria com o pseudônimo de Miguel
Torga.)
No quadro dessa constelação inscrevia-se, como estrela de primeira
grandeza, o Dr. Geraldo de Vasconcellos Barcellos. Diplomado em Farmácia e
Química por Ouro Preto, e em Direito por Niterói. Em Leopoldina e cidades
vizinhas, afirmou-se como advogado criminalista. Como professor, conheceram-no,
além do Colégio Leopoldinense, a Faculdade de Filosofia Santa Marcelina, de
Muriaé, e estabelecimentos educacionais da antiga Vila Rica, de Mariana e de
Valença, nos quais ministrou aulas de Latim, Português, Filologia, Literatura
Luso-Brasileira, História, Geografia, Química, Biologia e Sociologia. Pertence
à Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e à Academia de Letras
Marianense. Tem livros publicados de poesia e oratória. Muito mais numerosas,
porém, são as obras inéditas, que abrangem esses gêneros, a Filologia, a
Bioquímica, a Biologia e o Direito.
Em todas essas atividades tem brilhado o filho conspícuo de Alvinópolis.
Mas para mim, pessoalmente, os dois aspectos mais vívidos da personalidade de
Geraldo de Vasconcellos Barcellos são os de Poeta e Mestre de Poesia.
Não posso falar do Professor Barcellos sem falar um pouco de mim mesmo.
Aportei a Leopoldina com algumas tentativas falhadas de poema. Tendo
começado apenas a estudar Versificação, não chegara a discernir entre sílaba
gramatical e sílaba métrica. Em conseqüência, refugava os versos, ditados pelo
ouvido, que minha trôpega escansão dizia heterossilábicos; mas era impossível
não refugar, também, os que a incompetente contagem afirmava corretos mas o
ouvido não podia acatar. Assim, refugiei-me, humilhado, numa prosa ritmada e
rimada, de cujas poucas páginas nenhuma sobreviveu.
Nosso primeiro contacto, em classe, foi quase desastroso. Mal chegado
aos quinze anos, franzino, tímido, olhando de baixo para cima aquele homem alto
que me interrogava sobre questões de análise sintática, por pouco não provoco
um fim-do-mundo ao propor um inocente se para sujeito... Felizmente,
recuperei-me logo do tropeção na entrada. E, ao passarmos à poesia, bastaram
umas poucas palavras do Mestre para esclarecer, de uma vez por todas, aquelas
obscuras questões que me tolhiam o fluxo poético. Em breve, o seu conhecimento,
o seu repertório, a sua volúpia verbal, que nos transmitia, valorizando com a
voz grave e modulada cada verso, próprio ou alheio, que recitava, haveriam de se
tornar uma fonte de encantamento poético e um estímulo às nossas nascentes
veleidades.
Em torno do Mestre ¾creio que posso generalizar¾ gravitávamos eu e os
outros estudantes que principiávamos a emplumar asas para o vôo poético: José
Jeronymo e Deodato Rivera, Hélcio Campomizzi, Gustavo Monteiro de Castro
Júnior, José Herberto Dias, meu colega de turma Sebastião Murilo Pereira de
Oliveira, Romeu César Leite... (Vou lembrando os nomes e vendo, com saudade,
que alguns já se foram para o outro lado... e que a maioria optou, afinal, por
outros tipos de vôo, não menos respeitáveis.)
Falei do Mestre de Poesia. Quanto ao Poeta, cabe lembrar serem os seus
metros de eleição o decassílabo e o alexandrino, este quase sempre de recorte
clássico ¾o
alexandrino francês tradicional¾, mas eventualmente na mais moderna modalidade
trimembre, senão mesmo na de dodecassílabo sem acentuação definida. Pratica,
entretanto, com igual desenvoltura os outros metros ¾ o hexassílabo, a
redondilha, o eneassílabo, o hendecassílabo... Os temas parece-me serem, de
preferência, o do amor humano ¾neste livro, particularmente, centrado na devoção à
esposa querida, motivo de composições anteriores e posteriores ao seu
passamento¾
e o do amor divino ¾
que é a tônica de Na Seara do Evangelho, publicado em Belo Horizonte , em
1959.
Da qualidade poética de seus versos dirá, melhor do que esta prosa rasa,
a leitura dos poemas. Não me furtarei, contudo, a indicar minhas preferências.
Neste Livro de Elza, considero cumeeiros os sonetos “Sinceridade”, “Mensagem-Convite
a Minha Musa”, “Versos de Amor”, “Versos que te não Disse”, “Por entre
Escombros” e “Rimas de Amor”.
A dois outros darei destaque especial: “Últimas Palavras” e “Dilema”.
O primeiro, que apresenta a singularidade de um quarteto estrambótico,
perfeitamente harmonioso com os quatorze versos anteriores, é belo e pungente
na evocação de palavras da Amada em seu leito de morte. Girando em redor dessas
palavras, e encerrando com elas o estrambote e o soneto, dá o Poeta ao seu
lamento a perenidade da poesia.
“Dilema” oferece um bom exemplo de alusão, com feliz reaproveitamento de
versos alheios. Em seu final, conscientemente, o autor se inspira no do soneto
“Fermoso Tejo meu”, de Francisco Rodrigues Lobo, em cujo último terceto diz o
vate luso, fechando o confronto de si com o pátrio rio:
Mas lá virá a fresca primavera!Tu tornarás a ser quem eras de antes,Eu não sei se serei quem de antes era.
Esse verso final é citado na íntegra em “Dilema”, em que o nosso poeta
indaga da possibilidade de permanência ou refazimento, no além, dos laços que o
uniam à Amada neste mundo. Mas, como salienta Barcellos, com propriedade, em
nota nos originais, o seu soneto “é de natureza escatológica, considerando o
nosso último fim, no fim dos tempos, enquanto o do poeta lusitano não sai do tempo
e do espaço”.
Para transcrever, aqui, exemplos de elevada inspiração e refinada
fatura, prefiro, todavia, servir-me do esgotado Na Seara do Evangelho,
deste modo reofertando ao leitor duas páginas esplêndidas da outra vertente do
Poeta (e aproveito para sugerir o preparo de uma antologia que abranja, além
destes livros, os inéditos).
A primeira dessas páginas é um soneto cujos plangentes tercetos evocam,
sem contudo imitá-lo, o Alphonsus do Setenário das Dores de Nossa Senhora:
IN DULCI JUBILO
Mês de Maria! Em religioso enleio
de rosas, lírios meu sonhar se enflora...
Meu coração fez-se de plumas cheio
para louvar-te, Mãe, Nossa Senhora!
A própria terra enternecida agora
hinos te eleva em doce devaneio.
Mês de Maria! A prece se afervora!
Maio tangendo as esperanças veio!
Tudo são festas! Tudo são laudares!
O céu de novas pompas se recama...
perfumes e orações andam nos ares!...
Mãe de Deus, Mãe dos homens, Mãe das dores,
olha: a minh’alma vai tornar-se flama
na glorificação dos Teus louvores!....
A segunda, igualmente um soneto, em rigorosos alexandrinos de tom
parnasiano-simbolista:
A ASCENSÃO DO SENHOR
Nossa Senhora e os Onze, entre almas traiçoeiras,
ainda estão, ali, na infiel Jerusalém.
Manhã! Brilha a cidade, ao sol sob as seteiros
dos castelos, a olhar, arrependida, o Além.
Surge agora o Senhor! É nas asas ligeiras
da própria luz que Ele aparece, que Ele vem.
Vai ao monte subir... monte das Oliveiras!
Com Ele a própria Mãe os Onze vão também.
Ei-los, agora, enfim, ao topo da montanha.
Imprecisas, ao longe, as cruzes do Calvário,
tão clara e tanta é a luz que a tudo envolve e banha.
Fala aos Onze Jesus! Depois, de manso, lento,
Ei-lo a subir ao céu... Deslumbra-se o cenário...
Desfaz-se o Mestre em Luz, na Luz do Firmamento.
Façamos agora um pouco de silêncio, para a leitura deste livro. Mas,
antes de encerrar estas linhas, não resisto ao íntimo apelo de retornar a 1950
e a Leopoldina, para ver-me de novo adolescente, cheio de entusiasmo e de
esperanças, a aprender com o Professor Barcellos uma lição que seria para toda
a vida.
Como poderia imaginar, aquele menino metido a poeta, que viria a merecer
a honra de prefaciar um trabalho do Mestre?
quinta-feira, 15 de janeiro de 2015
Sarau poético musical do Antique
No dia 29 de outubro de 2014, como parte das Homenagens pelo Centenário de Morte de Augusto dos Anjos, o Grupo Antique promoveu um evento especial no Espaço Porão Odilon Barbosa. O grupo instrumental e vocal, do qual faz parte o acadêmico José Gabriel, vem se destacando pelas atividades em prol da formação de plateia e naquela data realizou um sarau poético musical intercalado com leitura de textos sobre a vida e obra do Poeta.
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Minha luta com as palavras
Anderson Braga Horta
In: Testemunho & Participação: Ensaio e
Crítica Literária.
Thesaurus, Brasília, 2005.
Palestra pronunciada na Associação
Nacional de Escritores, Brasília, em 6.10.1998
“Lutar com palavras é a luta mais vã”, diz
Carlos Drummond de Andrade num de seus mais prestigiosos e belos metapoemas (“O
Lutador”, de José). Começo com a
citação ilustre, não para sugerir impossíveis comparações, mas para lembrar que
nem só os poetas de menor porte suam a pena para agarrar a poesia. Assumindo o
risco de exagerar, diria que suam, isto é, trabalham, principalmente os
grandes. Não que dispensem eles a inspiração, ou não acredite eu nessa quimera.
Pelo contrário, para mim, a inspiração é fundamental. Só que dificilmente é
bastante. O vero cultor da palavra trabalha esforçadamente a dádiva da
inspiração, a fim de transformar o lampejo em peça inteiriça, que não se limite
a sugerir suas potencialidades. Atribui-se a Samuel Johnson a afirmação: “O que
é escrito sem esforço é geralmente lido sem prazer.” Escrever é cortar
palavras, dizem outros autores, como o nosso Marques Rebelo, assim enfocando um
aspecto particular dessa luta. Os que se contentam de escrever como falam,
pontificava Buffon, no seu famoso Discurso
sobre o Estilo, “ainda que falem muito bem, escrevem mal”.
Epigramaticamente, como tão bem o sabia fazer, brincava a sério Mário Quintana:
“O estilo é uma dificuldade de expressão.” Já que falei em Quintana, e para não
deixar dúvida quanto ao sentido do trabalho ou da luta do poeta, encerro estas
citações com outra jóia do Caderno H:
“A beleza de um verso não está no que diz, mas no poder encantatório das
palavras que diz: um verso é uma fórmula mágica.”
“No entanto lutamos mal rompe a manhã”...
Entrevistado, para o Suplemento Literário
do Minas Gerais, por Carlos Roberto Pellegrino (edição de 11 de março de
1970) e por Danilo Gomes (27 de novembro de 1976; entrevista reproduzida por
Danilo no 1.º volume de seu Escritores
Brasileiros ao Vivo, de 1979), consignei o que me parece definidor do meu
processo de criação. Ampliei-o em entrevista a João Carlos Taveira (revista Literatura, junho de 1996), da qual
transcrevo o trecho correspondente:
“O poema nasce quando quer. O ritmo, a idéia,
a imagem, às vezes todo um verso, a semente do poema se oferece de improviso.
Em geral é algo muito vago, uma nebulosa que gira na mente do poeta; mas pode
ser o verso inicial, como pode ser o fecho de um soneto. Daí para a realização
do poema vão algumas horas, ou dias, ou meses, e sempre muito trabalho. Quase
sempre: há poemas que se oferecem meio feitos.
Não será assim com todos. Mas é assim comigo.
Em minhas reflexões sobre o poético tenho
anotado que o poeta joga com dois elementos: inspiração e construção.
O primeiro não se manifesta sem o segundo — seria como uma alma sem corpo. Há,
todavia, poetas cerebrais que afirmam prescindir do que chamo inspiração — o
gérmen dado, ou intuído. Mas até um poeta de
construção, orgulhosamente intelectual e antilírico por excelência, como
João Cabral de Melo Neto (‘Esta folha branca / me proscreve o sonho, / me
incita ao verso / nítido e preciso’, diz em ‘Psicologia da Composição’), parece
admitir, ainda que sob uma capa de ironia, algo dessa ordem, por exemplo, em ‘O
Último Poema’, de Agrestes, ao dizer:
‘Não sei quem me manda a poesia’.
Não dispenso a disciplina, o lavor, o rigor
na construção do poema. Mas, se não me vem espontânea a centelha, a fogueira
queima em falso... ou não queima. Tentei, há anos, a via intelectual autônoma:
todo dia me obrigava a escrever, a página branca diante dos olhos, movendo a
pena uma experiência já ponderável do fazer poético. Fazia. Mas o poema não
prestava. (Há, todavia, um truque para cutucar a inspiração, para provocar o
poema: suscitar o estado de poesia
pela leitura de poesia, pela audição de música, enfim, por qualquer maneira
adequada à sensibilidade do poeta; ou estudar o tema desejado, meditar sobre
ele e largá-lo, deixando que o subconsciente trabalhe, até emergir a fagulha
detonadora.)
Assim, apesar de toda a disciplina, todo o
formalismo que, com razão, me imputam, considero-me um poeta de inspiração.”
Seja como for, a luta do poeta com as
palavras é uma luta amorosa.
Quanto ao poema oferecido, a que aludi numa dessas linhas, há o exemplo extremo do
poema sonhado (Coleridge, Bandeira...) e o menos raro do que vem espontaneamente, já pronto, sem
trabalho, esforço ou luta aparente (sem andaimes
de Bilac). “Iludo-me às vezes, pressinto que a entrega se consumará. Já vejo
palavras em coro submisso, esta me ofertando seu velho calor, outra sua glória
feita de mistério .... Cerradas as portas, a luta prossegue nas ruas do sono.”
A luta, então, não será do poeta com as palavras, mas das palavras entre si...
Permitam-me ler um poema de minha autoria,
não por supostas virtudes estéticas, mas pelo que ele sugere dessa luta das e
com as palavras. Intitula-se “Apoese” e está em Altiplano e Outros Poemas:
APOESE
Mudas, incriadas,
jazem no possível
todas as palavras.
Nesse limbo inscrevem-se
invisivelmente
todos os poemas
ditos, por dizer,
mais os indizíveis.
Nesse limbo se amam,
bicam-se as palavras,
numa intimidade
por nós mal sonhada.
Relações repousam
insolicitadas,
frases adormecem
de desinvocadas,
e afinal se cruzam,
crispam-se, eriçadas
na ânsia de uma língua
boca, pena, gesto.
Nesse inesgotável
lago das palavras,
onde tudo encontra
seu signo prateado,
mergulhou o Homem
e pescou sofismas,
teses, xingamentos,
jogos, alguns poemas.
Infinito é o Sonho
que, irrealizado,
dorme em apoese
nesse obscuro lago.
Não fui um poeta
precoce. Minha luta com as palavras começou por volta dos 14 anos, em
Manhumirim, Minas Gerais, em cujo Colégio Pio XI cursava o 4.º ano ginasial. E
começou com uma fragorosa derrota. Arrebatado na espiral encantatória dos versos
de Castro Alves, desejei ser poeta. No que, por sinal, seguiria o exemplo dos
pais. E deitei mãos à obra. Sucedeu, porém, que, tendo tido, havia pouco,
minhas primeiras lições de versificação, e não as havendo assimilado
corretamente, acabei diante de um impasse: escritos os versos, punha-me a
conferir-lhes as sílabas; mas, ignorando a distinção entre sílaba métrica e
sílaba gramatical, não havia meio de acertar as exigências do ouvido com as
exigências da “teoria”. Contentei-me, por então, com uma prosa ritmada, de que
não guardo cópia, mas de que me ressoa ainda a frase inicial: “Da cachoeira
ouvia-se ao longe o rugido monótono”...
A propósito, em mais de uma ocasião, tenho
recordado um fato pitoresco. Meu professor de Português, competente embora, também
não havia assimilado a lição... Tinha a teoria na ponta da língua, mas, não
sendo poeta, faltava-lhe aquele “saber de experiências feito”; faltava-lhe, em
suma, a prática do poema. Em classe, apresentando exemplos de alexandrino,
escolheu, por azar, o primeiro verso do poema “A Boa Vista”, do vate das Espumas Flutuantes. E escandiu:
“E/ra u/ma/tar/de/tris/te,/mas/lím/pi/da
e/su/a/ve...”
Dava treze sílabas. Errado! (Faltava-lhe o
conhecimento do alexandrino arcaico, também dito espanhol.) Se forçasse a
sinérese em “suave”, quebraria o galho com um dodecassílabo sem cesura
francesa. Mas isso não lhe ocorreu. Ocorreu-lhe, sim, escandir o verso de trás
pra frente, e do expor passou incontinênti ao fazer:
“Su/a/ve e/lím/pi/da/mas/tris/te/tar/de u/ma
e/ra.”
Deu certo (esquecida a problemática cesura)!
(Perdoe o velho mestre, aqui anônimo, a
maldade repetida de lhe recordar, in
absentia, um minuto anedótico. De justiça é manifestar minha gratidão, e,
com cinco décadas de atraso, agora o faço, pelo devotamento, pela clareza e
pelo rigor de seu magistério, a que devo o abrir de minha até então obnubilada
mente aos sóis de nossa língua.)
A metrificar aprendi mesmo no ano seguinte,
na também mineira Leopoldina (de Augusto dos Anjos e de Miguel Torga), onde cursei
o Clássico. Enfim compreendida a lição, tentei logo um soneto. Bem sucedido, ou
quase (em termos métricos...). Intitulei-o primeiro “Orvalho Celeste” e, em
seguida, “Orvalho Sideral”. Terão os amigos paciência de ouvi-lo?
ORVALHO CELESTE
No espaço...
em pranto estava o firmamento.
Os
astros... eram lágrimas ardentes,
que
gotejavam pelas faces quentes
do
Universo. Este gemia: “Eu lamento
aquela
flor tão bela, solta ao vento,
açoitadas
as pétalas frementes
pelas
carícias vis de vis serpentes,
beijadas
pelo solo lamacento.”
E
era grande, tão grande a sua dor
que,
do infinito, as lágrimas caindo,
no
límpido regaço iam da flor
depositar-se (oh! símb’lo de ternura!)...
seus
sofrimentos, mágoas mil carpindo,
deixando-lhe
no seio a jóia pura.
15 de maio do ano santo de 1950. Quase meio
século. Mas deixemos de lado o tempo, que não nos deixa. Quero aproveitar essa
canhestra composição, feita mentalmente, num banco de jardim, e só depois
passada para o papel (do que não fiz um hábito), para lhes dar o primeiro
exemplo meu de transpiração em cima da inspiração. Fiz-lhe uns retoques, logo
que me senti com mais cancha, e nessa versão um pouco menos rude peço permissão
para redizê-la:
ORVALHO SIDERAL
No
espaço – em pranto estuava o firmamento.
Os astros
– eram lágrimas ardentes
que
gotejavam pelas faces quentes
do
Universo. Era do éter o lamento
por
uma flor singela solta ao vento,
açoitadas
as pétalas frementes
pelas
carícias de cruéis serpentes,
beijadas
pelo solo lamacento.
E
era tão grande e bela a etérea dor
que
as estrelas, rolando-se do Infindo,
a
límpida corola iam da flor
buscar
na Terra, e –oh! cimos de ternura!–
iam
as lágrimas do céu, caindo,
brilhar
na flor qual outra estrela pura!
Falei em sonetos iniciados pelo último verso.
É o caso dos que fiz a partir das onze chaves de ouro sugeridas por Guilherme
de Almeida (diversos poetas aceitaram o desafio, de que alguns se saíram bem,
entre estes o nosso Henriques do Cerro Azul). Mas vou preferir outra
ilustração. O poema “No Horto”, de 1959, incluído em Incomunicação, tinha, originalmente, no fim da primeira estrofe,
este verso: “Dentro do coração somos todos românticos.” Era um terceto, assim:
Meu
coração espera as oliveiras
e os
pães e os peixes do milagre.
(Dentro
do coração somos todos românticos.)
O poeta amigo Deodato Rivera (irmão do
recém-editado e já tão festejado tradutor de poesia José Jeronymo) tanto
espinafrou o indigitado verso, tachando-o de explicativo e, pois, expletivo, ou
melhor, inútil, portanto pernicioso, que acabei cortando-o. Concordo que
naquele contexto não fazia falta. Mas continuei gostando do verso. Tanto que,
trinta e três anos depois, o engastei num soneto de alexandrinos mistos,
parnasianos e arcaicos. Ei-lo:
PULSO
—Qual
no espaço exterior, no antro de nossas mentes
há
momentos também de sóis deliqüescentes,
de
etéreos candelabros num puro azul sem rastros!
—Somos
feitos da mesma seiva de luz dos astros.
—Oh,
a negra cabeça da noite rola do alto...
Sermos
também lastrados de queda e sobressalto...
—O
pulso que na esfera mais mínima palpita
é o
mesmo que lateja na galáxia infinita.
—Mas
eu sinto que o peito uma ânsia azul me invade
de
ser somente luz, acima, imensidade!
Sinto
que há dentro em mim um eu que me transcende!
Sobe
o mar interior, e no abismo que ascende
Algo
vem se formando como espumas e cânticos!
—Dentro
do coração somos todos românticos.
Já que, insensivelmente, fui transformando
este depoimento num buquê de curiosidades, permitam-me ainda outras. Em 1954
escrevi o seguinte poema:
MANHÃ
DENTRO DA NOITE
Vontade
de voar para lá do horizonte,
sentir
a força cósmica em meu peito,
nas
vastas solidões intermundiais.
Vontade
de sofrer toda a dor do universo,
para
depois cristalizar num verso
as
transfigurações universais.
Deve
ser belo o azul naquela intimidade
que
as almas gêmeas entrelaça.
Deve
ser belo
sentir,
flutuando, a melodia eterna
e a
suprema visão do infinito,
sorrindo
na
transcendente afirmação do Ser!
Ah,
pudesse eu diluir-me, espiritualizado,
no
mistério do espaço constelado!
Tenho
medo, porém... A frialdade etérea
havia
de gelar-me as canções na garganta.
E o
universo, oprimindo-me o peito sombrio,
mataria
a ilusão de asas partidas
que
dentro de meu ser murmura e canta.
Tenho
medo, e soluço.
O
Cruzeiro do Sul ironiza, de bruços,
minha
aflição profundamente triste.
O
mundo não existe,
nesta
hora longa, ao meu olhar de louco...
E eu
vou compreendendo, pouco a pouco,
a
beleza sublime de ser triste
e a
glória incompreensível de ser louco!
Em 1997, reaproveito a
inspiração desse poema solto e construo este outro:
ENDECHA
Ânsia
louca de voar para além do imperfeito,
abrir
à força cósmica o meu peito
nas
vastas solidões intermundiais!
Ânsia
triste de haurir toda a dor do Universo
e
–semideus!– cristalizar num verso
as
transfigurações universais!
Ao
invés, o horizonte atro me fecha.
Velha,
a planger-se, a Soluçante Endecha
chora-me
a mim, como invertida fonte.
Tolhe-me
o novo, em tudo oculto, o velho.
Outro
éter! outra luz! outro evangelho!
.......................................................................
Vontade
de voar para lá do horizonte...
Mais se vive, mais se
muda de pele, mais se é o mesmo... Não obstante, transpirando sobre a
inspiração de quarenta e três anos, de certo modo, produzi novo artefato.
Melhor? Quantas vezes “corrigi” um poema para pior... Sorte é percebê-lo. Neste
caso, porém, talvez pudéssemos cogitar de inspiração cumulativa: o fruto de uma
inspiração inspirando um derivado...
Seria de esperar que um poeta, falando de sua arte, selecionasse para
exemplificá-la os seus melhores poemas. Aqui, faço quase o contrário... Rendendo-me
de vez ao pitoresco, lembro um soneto hendecassílabo, feito a duas mãos, à mesa
de um bar, com o Deodato Rivera. Batizamo-lo de “Soneto Horrível”: “Pela noite
austera badalando triste, / chora ao longe um sino, lívido ao luar. / Quanta
nostalgia, quanta mágoa existe / neste seu plangente, negro badalar.” Tão
horrendo, mesmo, que a tempo o devolvo ao silêncio do esquecimento. Seja-nos
perdoado o delito estudantil (estávamos em 1953, em Leopoldina).
Ilustrativos, também, da tensão entre
inspiração e trabalho podem ser os centões, poemas feitos mediante a
recombinação de versos alheios, caso em que o segundo pólo quase se resume em
transpiração...
Retomo a deixa da “Endecha” para recordar
como, de tão outra maneira, não um poema, porém um punhado de poemas me serviu
de espoleta para a deflagração do livro que julgo o mais bem construído dentre
os meus. Em 1964-65, revoltado com a Redentora,
escrevi uma série de agressivos poemas de protesto, em torno dos quais e a
partir dos quais acabei ideando os Exercícios
de Homem. O livro foi crescendo (chegou a ter cem ou mais composições) e, à
medida que crescia, organizando-se e universalizando-se, e, à medida que se
organizava, minguando em quantidade, de modo que a versão final (reduzida a
cinqüenta e uma peças) funciona —assim o creio, sem maiores pretensões— como um
só poema, uma espécie de epopéia moderna, uma espécie de epopéia do espírito.
Dessa versão definitiva, pelo que tinham de datado, de circunstancial, de mais
perecível, portanto, foram alijados exatamente os poemas-estopim, ou
poemas-gatilho, em torno de vinte (além de outros que desloquei para o Cronoscópio). Serviram de catalisador, e
foram sacrificados. Sob o rótulo Poemas
Escritos com Raiva, ou simplesmente Poemas
com Raiva, pretendo publicá-los na reunião de livros intitulada Fragmentos da Paixão.
Minha poesia se vale, indiferentemente, do
verso medido e do verso livre, das formas fixas e das imprevisíveis, do antigo
e do moderno. Como, porém, o tempo que nos resta não comporta outras leituras,
escolho para encerrar esta conversa um poema recente, vazado na forma do que
deu início à minha aventura poética: um soneto decassílabo às antigas. Leio:
LASCIVA EMBRIAGUEZ
Lasciva
embriaguez da poesia,
da
música e do amor! Uma só cousa
sois
vós para quem quer, para quem ousa
o
mergulho na vaga fugidia
que
é o impulso da vida. Fugidia
mas
constante, um arder que não repousa,
que
desconhece o falso estar da lousa,
que
funde o ser na sempiterna via.
Ó
divina embriaguez, toma-me os passos
e
deixa-me sonhar pelos espaços
do
Ser, indiferente à realeza
da
fortuna e da glória, inteiro e salvo
de
toda circunstância, que é teu alvo
o
coração fremente da Beleza!
Obrigado, amigos.