Anderson Braga Horta
In: Criadores de Mantras; Ensaios e
Conferências.
Thesaurus, Brasília, 2007.
A meus mestres e condiscípulos de Leopoldina
Fui cedo iniciado nos mistérios da quarta dimensão que é o
universo maravilhoso da palavra escrita. E nesse universo transtemporal e
transmaterial aprendi a habitar simultaneamente mundos paralelos e a ser
antípoda de mim mesmo. Para o menino imaginativo, cada livro era uma aventura;
tornei-me um aventureiro insaciável. Naturalmente, muitas foram as leituras
marcantes dessa fase: certa página de Humberto de Campos, um poema de Vicente
de Carvalho, quilos de histórias em quadrinhos, romances, um ou dois filósofos
abstrusos; mas, acima de todas, a obra infantil de Monteiro Lobato. Não
pretendo me deter, contudo, nessas primeiríssimas e, de certo modo, passivas
explorações literárias; quero antes falar de um dos livros que mais fortemente
me ajudaram a estruturar uma experiência então nova para mim: a do fazer
poético.
Anacronismo
Fecundo
Trata-se de um dos mais antigos livros que conservo: data
de 1951 a
dedicatória que lhe apôs meu Pai. Não foi a primeira influência. Poetas
inaugurais foram-me —além de meus próprios Pais— os representantes maiores de
nossas gerações românticas, Castro Alves à frente. (Sobre estes, escrevi já um
ou dois depoimentos.) Também não foi a última. Seguiram-se-lhe Alphonsus, Cruz
e Sousa, Augusto dos Anjos (acerca dos quais tenho também escrito algo), sem
falar no Camões, no Antero, no Guerra Junqueiro; e, num segundo momento de
minha formação, os modernistas – Bandeira, Menotti, Drummond, Jorge de Lima,
Cecília, Henriqueta. E Pessoa. Antes e depois dele, em suma, arrolaria ainda um
bom número de antigos e modernos, clássicos e românticos, gregos e troianos
(especialmente se portugueses ou brasileiros...). Elementos, todos eles, do meu
caos particular (“que um dia, quem sabe, organizarei em águas, terras e céus” —
atrevo-me a esperar, num poema de Cronoscópio).
O livro a que tenho me referido é uma amarelada brochura
editada em 1949 (23.ª ed.) pela Francisco Alves: Poesias, de Olavo
Bilac.
Alguém há de pensar, e talvez dizer, que Bilac, mais
Castro Alves, enfim românticos, parnasianos, simbolistas e outras antiguidades
—como influência literária— é dose excessiva de anacronismo para os anos
cinqüenta, na culta cidade de Leopoldina, vizinha da verde Cataguases.
Peço licença para discordar. Para mim, pessoalmente, essa formação
tradicional (bastante mineira, penso eu, e com isto não reduzo o “espírito de
Minas” a um obscuro conservantismo; ao contrário, tenho em mente o lastro que
orienta o vôo livre de pássaros que se chamem Henriqueta Lisboa, Murilo Mendes,
Carlos Drummond de Andrade), essa formação foi um longo e amoroso aprendizado.
Era um mundo organizado, tudo no seu lugar; um mundo medido, comedido, de que
proclamo saudade noutro poema do Cronoscópio (“Auto-Elegia”), bem como
num soneto de Incomunicação (“Naquele Tempo”) de que transcrevo o
terceto final:
“Perdi o ritmo dos poetas antigos,
perdi a música dos poetas antigos,
hoje sou duro e seco e sem romantismo.”;
não este caos em que estamos mergulhados (caos,
todavia, de que sairá um cosmos, “um ordenado universo” — ouso novamente
augurar, na citada “Auto-Elegia”). Não um mundo a que devêssemos pretender
retornar, isso não; mas um mundo de onde podemos talvez trazer algum
instrumento que nos oriente neste caos, nos ajude a compreendê-lo e, afinal,
transcendê-lo, na construção de uma terceira e mais alta realidade.
Paixão e
Rigor
Como disse, Castro Alves está no limiar de minha
experiência poética. À semelhança de seu verbo genial procurei persistentemente
plasmar-me, sob o influxo daquela exaltação generosa e brilhante. À sua lição
de exuberância veio contrapor Bilac uma lição de rigor. (Não que faltasse ao
romântico o senso de composição, ou ao segundo servisse a carapuça de mármore
genericamente talhada para os “parnasianos”. Apenas extremo, em um e outro,
características maiores.)
Ardente mas contida emoção. Exaltação e rigor, rigorosa
paixão. Caos e cosmos. Acho que está aí o segredo de toda grande poesia, de
toda grande arte. Bilac foi um de meus mestres nisto, que aprendi ao menos
teoricamente: "A poesia é uma explosão controlada." (Seja-me perdoada
mais esta autocitação.)
Vê-se logo que não me refiro ao Bilac da “Profissão de
Fé”, nem ao das Panóplias, ainda excessivamente canônico, mas ao lírico,
ao amoroso, ao erótico sem “apelações” de Via-Láctea, Sarças de Fogo
e Alma Inquieta, ao épico d’O Caçador de Esmeraldas, ao
contemplativo de Tarde.
A “Profissão de Fé” é um hino de amor à Forma, ao
“Estylo”. O soneto “A um Poeta” (Tarde) é uma conclamação ao trabalho
beneditino, paciente, solitário, perseverante, incansável, a fim de que
“Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:
Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.”
Ambos os poemas se prestam excelentemente à ilustração do
ideário parnasiano. Exemplificam bem o rigor formal, a ascese do poeta. Onde,
porém, consegue o equilíbrio entre as forças polares aqui chamadas paixão e
rigor é em poemas como O Caçador de Esmeraldas, cuja exaltação verbal
muito o aproxima do grande romântico; no soneto a Bocage (“mestre querido”),
canto de fidelidade à poesia e à língua portuguesa (também vigorosamente
celebrada no soneto deste título); nos demais sonetos da Via-Láctea,
destacadamente o famosíssimo n.º XIII — “Ora (direis) ouvir estrelas!” e o n.º
XXIX — “Por tanto tempo, desvairado e aflito”, de minha predileção; em “A
Avenida das Lágrimas”, de linguagem e efusão também românticas; e em inúmeras
outras composições, muitas das quais vou arrolando aqui, para lembrar o volume
dos poemas de nível excepcional deixados pelo velho Bilac: “O Julgamento de
Frinéia”, “Súplica”, “Beijo Eterno”, “Pomba e Chacal”, “Nel Mezzo del Camin...”, “Inania Verba”, “Virgens Mortas” , “Tercetos”, “In
Extremis”, “Dentro da Noite”, “Campo Santo”, “Hino à Tarde”, “O Vale”, “As
Estrelas”, “As Ondas”, “Microcosmo”, “Ressurreição”, “Benedicite!”,
“Respostas na Sombra”, “Natal”, “Fogo-Fátuo”, “Perfeição”, “Um Beijo”;
“Criação”, “Semper Impendet”, “Assombração”, “Diamante Negro”, “O
Cometa”, “Diálogo”, “Avatara”, “Oração a Cibele”, “Sinfonia”.
No Limiar do Mistério
A
quando e quando, rende-se o poeta à magia da aliterante música simbolista, como
neste terceto magistral de “A Tentação de Xenócrates”:
“Tíbios flautins finíssimos gritavam;
E, as curvas harpas de ouro acompanhando,
Crótalos claros de metal cantavam...”
Notas
simbolistas creio ver, por exemplo, em “Surdina” (Alma Inquieta) e
em mais de um dos intensos sonetos de que está referta a Tarde do poeta.
Cito a “Cantilena”, em versos de quatorze sílabas, e os alexandrinos de “Vila
Rica” e “Os Sinos” (belíssimos).
Lembra-nos, finalmente, o clima simbolista a sensação de
umbral que nos transmitem alguns dos sonetos mais altos da fase derradeira. Escolho
para representá-la este magnífico “Introibo!”:
“Sinto às vezes, à noite, o invisível cortejo
De outras vidas, num caos de clarões e gemidos:
Vago tropel, voejar confuso, hálito e beijo
De causas sem figura e seres escondidos...
Miserável, percebo, em tortura e desejo,
Um perfume, um sabor, um tato incompreendidos,
E vozes que não ouço, e cores que não vejo,
Um mundo superior aos meus cinco sentidos.
Ardo, aspiro, por ver, por saber, longe, acima,
Fora de mim, além da dúvida e do espanto!
E na sideração, que, um dia, me redima,
Liberto flutuarei, feliz, no seio etéreo,
E, ó Morte, rolarei no teu piedoso manto,
Para o deslumbramento augusto do mistério!”
Concluindo,
confesso que as Poesias de Bilac foram-me, em fundo e forma —como, à
outra mão, o estro de Castro Alves—, uma das mais vívidas revelações e uma
exigente escola, que reconheço e proclamo, e que —associada sempre à lembrança
de Leopoldina, estrada de Damasco da minha poesia— me é grato agora recordar e
reviver.
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