Anderson Braga Horta
In: Do que É Feito o
Poeta.
Thesaurus, Brasília, 2014 (no prelo).
Academia de Letras do Brasil, Brasília,
em 11 de agosto de 2004.
No remoto ano
de 1950, numa pequena cidade mineira da Zona da Mata, um grupo de adolescentes,
vindos de diversos pontos do Estado e do País, reuniu-se como que por obra do
acaso, e essa reunião foi cimentada por afinidades logo percebidas, que
imediatamente se transformaram em amizade. Era a veneranda cidade de Leopoldina,
onde, um quarto de século antes, freqüentara o então Ginásio Leopoldinense o
jovem português Adolfo Correia da Rocha, que mais tarde, de volta à pátria,
brilharia como estrela literária de primeira grandeza, com o nome de Miguel
Torga; era a tradicional e culta Leopoldina, onde, no ano que marcou o início
da 1.ª Guerra Mundial, sofreu seus últimos dias o grande poeta do Eu, o
paraibano Augusto dos Anjos.
Os rapazes que
então se encontravam, atraídos pela boa fama do Colégio Leopoldinense,
dir-se-ia que só então chegavam, de fato, ao termo do processo de nascimento.
Com efeito, experimentariam, a partir dali, as primeiras amizades verdadeiras,
desvinculadas dos folguedos infantis. Longe de casa, tiveram então um começo de
vida independente. Primeiras responsabilidades. Para alguns, como José Jeronymo
Rivera e eu, primeiro trabalho ¾ professores que fomos de jovens internos do Seminário.
Primeiros amores. Descobrimento da poesia.
No princípio era o caos. A noite tenebrosa
Cobria
a imensidão sombria e silenciosa
Como
um negro sudário, amortalhando o espaço,
Num
amplexo fremente, em sepulcral abraço!...
- E
Deus criou a luz! E logo o mundo inteiro
Banhou-se
em resplendor, e um celeste chuveiro
Dos
astros derramou-se, em profusão brilhante,
Por
sobre a Terra nua, agreste e deslumbrante.
- E
Deus criou a vida! E as árvores surgiram
Em
bosques de verdura, e o deserto cobriram!
De peixes povoou-se o oceano azul e calmo.
- E
toda a criação, entoando ardente salmo,
Glorificava
o Ser onipotente e bom
Que a tudo concedera o doce e suave dom
De
gozar a beleza e a liberdade e a paz
Deste
Éden de delícia e de ventura tais!
Os
pássaros no céu cantavam docemente
Festivos
madrigais, num voejar fremente...
As
flores em botão, nos bosques, entreabriam
As
pétalas sorrindo, e os colibris desciam
Do
espaço p’ra beijar os cálices floridos...
Das
fontes a brotar, filetes coloridos,
Refletindo
o luzir do Astro-Rei no Infinito,
Banhavam-se
de prata, em misterioso rito...
E tudo era alegria... e, entanto, o Criador
Sentiu
que embora belo e cheio de calor
O
mundo era imperfeito: inda faltava alguém
Que
viesse completá-lo, e desfrutar também
A
doce suavidade, a paz do Paraíso...
- E o
homem foi criado ¾ e logo, num sorriso,
De
fé e de esperança envolveu toda a Terra
E
o mar, e o vale, e a mata, e a resplendente serra...
Cito versos de
Rivera, dos que escreveu naqueles primórdios de riquíssima semeadura. A esses
não deu prosseguimento. Por quê? Não sei, mas estou a imaginar se não desejaria
o jovem poeta, inconscientemente, manter-se in æternum nos
alvissareiros, nos doces inícios, com as suas lutas, é fato, mas ainda não com
as desamparadas batalhas em que a vida costuma exercitar os seus filhos.
A citação não é
sem propósito. Leopoldina foi para nós, de certa maneira, o começo do mundo. E
que bom que esse começo tenha sido poético, repleno de fé no ser humano e na
vida.
Daquele pugilo
de adolescentes que ali se reuniam para levar o mundo nos ombros é preciso
lembrar alguns nomes, pelo menos os dos mais afinados ao diapasão da poesia.
Iniciavam todos a marcha do país da esperança para o das realizações (e das
frustrações, ai de nós!), e o rito de passagem era oficiado pelas musas. Para a
maioria o rito se perdeu nas primeiras curvas do caminho; mas para uns poucos o
sacrifício poético (sacrifício, aqui, no sentido de oferenda, não de
martírio) seria por toda a existência.
Junto de José
Jeronymo orbitavam a vida: Deodato, seu irmão, dois anos mais moço - que,
de Leopoldina e do Rio, aportaria a Brasília e daqui, logo que se implantou a
ditadura, ganharia o mundo, para curtir longo exílio; Hélcio Campomizzi, que se
formaria em Odontologia e em Medicina e teria a trajetória prematuramente
truncada pelo coração explosivo; José Herberto Dias, que também passaria por
este altiplano, sem nestes cerrados lançar raízes; Luiz Henrique Pessina, que,
devotado antes à poesia das formas que à das palavras, se tornaria arquiteto,
abrilhantaria o magistério da profissão em Brasília e está hoje entre nós;
Amaury Pacheco, representando outra vertente nessa cadeia em que a comunidade
maior era, afinal, a da amizade - engenheiro, constituiria seu destino em terras
fluminenses; e outros tantos amigos, e amigas, cuja relação devo em tempo
sustar, para não inundar esta hora de nomes plenos de sentido para Rivera - e
para mim - ,
mas não para a maioria dos amigos que nos prestigiam com sua presença.
Algumas outras
figuras, entretanto, quero ainda lembrar, para dar uma idéia da atmosfera
humana que insuflava aquele punhado de quase-meninos:
- Assim meu colega de turma Sebastião Murilo... de quê, mesmo? os nomes vão-se
apagando da memória... Sebastião Murilo Pereira de Oliveira, negro e tímido,
contrastando com o muito branco e extrovertido Gustavo Monteiro de Castro
Júnior, poetas ambos, ambos demasiado cedo colhidos.
- O
dentista Murilo Monteiro de Castro (quantos Murilos poetas em Minas!), que se
foi também prematuramente, afogado, em meio a férias que gozava em São Pedro dos Ferros.
Esse dentista-poeta, morto sem ver seus versos publicados, dando, certa feita,
atendimento profissional a Rivera, deu-lhe de quebra ¾e a mim, que o acompanhava¾
eloqüente atendimento versífico, discorrendo com proficiência sobre a mecânica
do alexandrino, que porfiávamos por dominar.
- O
desenfreado, pálido, estranho, solitário Haroldo Barreto, sonetista de valor,
que saía da toca para, violino em punho, acompanhar-nos em nossas escapadas
vespertinas ou noturnas.
- René
Monteiro de Castro, advogado, que se unia a nós, tão mais moços, e conosco
fraternizava e conosco se confundia, talvez por encontrar em tal companhia o
universo de sonho, de primavera, de liberdade e de culto às letras, que alhures
não via...
Do corpo
docente destacavam-se:
- Joaquim Guedes Machado, português, professor de Matemática (que já o fôra de
meu pai), homem de sensibilidade, violinista, famoso pela vivacidade
intelectual e por certa truculência (que já encontramos atenuada) para com os
alunos relapsos. Conta-se que chegou a botar para fora, ou melhor, jogar fora
de classe, pela janela, um ou outro mais nonchalant ou mais atrevido.
(Amenize-se: as janelas eram baixas... Davam para um corredor interno aberto em
direção ao pátio.)
- Seu
amigo, e antípoda pelo temperamento manso e reservado, com quem decerto
recordava passagens de sua vida no além-mar, Monsieur Rodolphe Gibrat.
Lecionava Francês e Espanhol.
- Lydio
Machado Bandeira de Mello, advogado, poeta, matemático e filósofo.
Impressionava com o título de um de seus livros ¾Prova Matemática da
Existência de Deus¾ e com suas divagações sobre uma espécie de memória do
Universo contida nas raias de hidrogênio espalhadas pelos espaços. Publicou
vários livros, alguns caprichosamente manuscritos. Fez brilhante carreira em Belo Horizonte ,
como professor universitário.
- Oiliam José, historiador, lecionava também Filosofia. De modos ascéticos,
disciplinadíssimo, severo, dedicado. Vive hoje na capital do Estado. Autor de
livros de história e de poesia, é membro e secretário perpétuo da Academia
Mineira de Letras.
- Hamil Adum, professor de Inglês. Competente, singularizava-se por fazer boa
camaradagem com os discípulos.
- Geraldo de Vasconcellos
Barcellos, poeta. Dava aulas de Português, Biologia e Química. Entre
esses extremos, distinguia-se por bem orientar e estimular, poeta que era, os
bardos al primo canto. Deodato Rivera, já no Rio de Janeiro, em 1996,
organizou um mutirão de ex-alunos para editar um de seus livros, Para Elza,
de que me coube o prefácio.
A temida
Professora Regina Monteiro de Castro (de Desenho e Francês), Dona Olimpinha,
Dona Belinha e Dona Judith, esposa do Professor Machado, davam a nota feminina
no magistério.
Monsenhor
Guilherme de Oliveira, o Monsgo, como o chamávamos, devido à maneira abreviada
com que se assinava, não lecionava, mas era o diretor do Colégio. Muito
pequeno, franzino e tranqüilo, sabia fazer-se estimado e respeitado.
Dentre as
pessoas gradas da cidade com que José Jeronymo mantinha relacionamento mais
chegado recordo o Prof. Alziro Carvalho, antigo diretor do Colégio, e o Dr.
Castellar Modesto Guimarães, promotor de justiça.
Em 1950
estávamos no internato José, Deodato e eu. Era um internato camarada. Como
tínhamos bom aproveitamento escolar, davam-nos permissão para sair praticamente
a semana toda, de modo que podíamos jogar nossa sinuca, tomar nossa cerveja
e... namorar. O descobrimento do amor não podia deixar de se refletir na
poesia, igualmente recém-descoberta, de Rivera. Quero ler uma dessas primícias,
que bem reflete o halo românico em que nos movíamos, e cujas qualidades mostram
o injustificável de ter o autor interrompido por décadas o exercício do verso:
VISÃO DE AMOR
Do
firmamento no véu,
Em
cada estrela do céu
- Dos
astros no resplendor -
No
azul transparente e claro,
Zimbório
precioso e raro,
- Em
tudo te vejo, amor!
No despertar da manhã,
Quando a natura louçã,
Sentindo o morno calor
Do sol que nasce distante
Acorda, alegre e vibrante,
- Em
tudo te vejo, amor!
Nas
verdes ondas do mar,
Murmurando,
sem parar,
Com
leve e brando rumor,
Cantigas
doces e belas
Aos
barcos de brancas velas,
- Em
tudo te vejo, amor!
Quando, em tarde merencórea,
Ouço de amores a história
Na voz de um meigo cantor
De volta ao ninho,
arrulhando,
A companheira chamando,
- Em
tudo te vejo, amor!
Na
pétala perfumada
Da
flor à beira da estrada
- Encanto do viajor
Que
vai pela vida afora,
De
dores a alma em pletora,
- Em
tudo te vejo, amor!
Nas águas claras do rio,
Que em turbilhão ou num fio,
Em silêncio ou com fragor,
Vão correndo à luz do sol,
Saudando um novo arrebol,
- Em
tudo te vejo, amor!
Da
noite na paz tranqüila,
Enquanto
o orvalho destila
Gotas
na pét’la da flor,
E
a lua deixa no rastro
Cintilações
de alabastro,
- Em
tudo te vejo, amor!
No esplendor da primavera,
Quando em luzes a tapera
É toda vida e calor,
E o coro da natureza
Entoa um hino à beleza,
- Em
tudo te vejo, amor!
No
marulhar da cascata,
Alegre
chuva de prata
De
imaculado lavor,
Fulgindo em festas ardentes
De
brilho e espumas albentes,
- Em
tudo te vejo, amor!
Enfim, em tudo que encerra
- No
céu, no mar ou na terra ¾
A obra do Criador,
- Em
tudo tu estás presente!
Em tudo est’alma te sente!
- Em
tudo te vejo, amor!...
Em 1951
sairíamos para uma pensão, em casa de D. Sirene, próximo do Colégio, José,
Deodato, Luiz Henrique, Amaury e eu, indo juntar-se ao clã alguns mais moços.
Falei em bom
aproveitamento escolar. No caso de Rivera, a expressão fica longe da realidade.
Aproveitamento máximo tem melhor cabimento. Desde o primeiro instante ele se
revelou aluno excepcional. Sua média final era 10, invariavelmente, em todas as
matérias. No Colégio Leopoldinense só tinha havido um caso assim, protagonizado
por uma moça. Eu, não conheço nenhum outro.
Já era, naquela
época, leitor incansável. Nos primeiros tempos, no internato, ensaiaram
apelidá-lo Jornaleiro, porque era visto sobraçando grossos jornais do Rio e de
São Paulo, jornais que lia religiosamente, com particular interesse nos
suplementos literários. Soube desde logo canalizar para a vida em comum o seu
grande potencial intelectual, ao invés de usar apenas para passar de ano, e
para gozo interno, essa extraordinária capacidade de ler, aprender e fruir.
Entre maio e outubro de 1953, junto com
Deodato, figurando ele como diretor e o irmão como secretário, tirou sete
números do Três de Junho, “órgão dos alunos do Colégio Leopoldinense”, nos
quais acolheu múltipla contribuição, colaborando largamente ele mesmo com
editoriais, poemas, crítica cinematográfica, notas literárias e políticas.
Releio os primeiros versos que nele publicou (e em que já se nota a marca
simbolista):
ESPECTROS
Nas
asas virginais da Fantasia,
Entre
nuvens de sonhos e desejos,
Ao
som da magistral polifonia
De
um festival de cores e de arpejos;
Vão
passando, em fantástica harmonia,
Em
meio a tempestades e lampejos,
As
procissões do Amor e da Poesia
- Estranhos e patéticos cortejos
De ilusões, esperanças e quimeras,
Anseios
de ternura incompreendida,
Farrapos
de emoções da mocidade,
Lembranças
de passadas primaveras,
Toda
a existência humana resumida
Num
cortejo de dor e de saudade...
A ida para Leopoldina
fora inspirada aos dois irmãos pela experiência de um primo, Hermenegildo
Villaça - o
Hermê - , com quem se reencontrariam em Brasília e que se tornaria, para mim,
parte dessa irmandade adotiva. Villaça lá estivera alguns anos antes, mais para
servir ao Exército no Tiro-de-Guerra 98 que por outros quaisquer motivos.
José Jeronymo
Ribeiro Rivera - este
o nome completo do nosso mais novo acadêmico¾ nasceu no Rio de Janeiro,
no bairro de Vila Isabel. (Não nega a origem, amante que é da arte de Euterpe,
desde a criada por Noel e companheiros de altitude em nossa melhor música
popular, até os clássicos de todo gênero: Bach, Mozart, Beethoven, Schubert,
Schumann, Tchaikovsky e Verdi puxando o coro.) É filho de Emílio Vello Rivera e
Helena Pinto Ribeiro Rivera.
O avô paterno,
Geronimo Vello Rivera, era natural de Covelo, província de Pontevedra, na
Galiza, Espanha. Nascido em 1874, teria vindo muito jovem para o Brasil, como
ajudante de padeiro. Aqui se casou com Raquel dos Santos Rivera, provavelmente
originária da província de Trás-os-Montes, Portugal. (Consta que essa avó,
antes da relativa prosperidade que viria a conquistar o casal, teria engomado
as camisas de Bilac.) Geronimo Vello trabalhou sempre no ramo da panificação,
chegando a sócio de vários estabelecimentos, um deles na Rua da Matriz, em
Botafogo, onde nasceu Emílio. Fixou-se no Largo do Pechincha, em Jacarepaguá,
onde fundou a Padaria Rivera, existente até hoje. Faleceu em 1939, seguido por
Raquel sete anos mais tarde. Foi a herança desse avô padeiro e dessa avó
engomadeira que possibilitou os estudos de José e Deodato.
O avô materno,
José Pinto Ribeiro, médico, paulista, casou-se em Barra Mansa com Maria
Ramos Pinto Ribeiro. Foi prefeito daquela cidade fluminense, onde há rua com
seu nome, e deputado estadual. Ao se mudar, viúvo, para o Rio, levava três
filhas: Helena, Adélia (que se tornou irmã de caridade e foi madrinha de
batismo de Rivera, vindo a falecer com pouca idade) e Angelina, falecida em
2004, aos 95 anos.
Segunda
interferência de Polímnia, ou augúrio de poesia, entre os ancestrais de Rivera:
a menina Helena foi brindada com um poema por Luís Pistarini, amigo de seu pai.
Desse poeta, em nosso tempo de estudantes, algo ainda se podia ler em uma que
outra antologia. Seu nome vai submergindo na maré montante do oblívio. O poema,
datado de Barra Mansa, 1916, é, pois, dirigido a uma garota de 11 anos. Vale a
pena recolher esses versos singelos:
À HELENA
Encantadora Filhinha do Dr. Pinto
Ribeiro
Helena... Angélica Helena
Tem
um quê celestial...
É
uma graciosa açucena,
É
um casto lírio do val!
Que
suave inocência bóia
Nos
seus olhos virginais!
Sua
homônima de Tróia
Nunca
teve olhos iguais!
A
boca fresca e mimosa,
Qual
bipartida romã,
Recorda
um botão de rosa
Pompeando
ao sol da manhã...
Helena
Pinto Ribeiro
Tem
onze anos... Onze só,
E
um rostinho feiticeiro...
Mas...
nunca teve um coió!
Também
pudera!Tão linda,
Mas, tão criança também!
Como
flirtar quem ainda
Mal
na vida entrando vem?
Não!
disso não cuida a Helena,
Pois
ela é a primeira a ver
Que,
sendo assim tão pequena,
Tem
mais coisas a fazer...
Por
exemplo: ir ao colégio...
Pegar
um livro... estudar...
Ah!
seria um sacrilégio
Seu
coração perturbar...
Deus
a livre vigilante
Da
moda que hoje aí vai...
Que
por ora ¾ boa e amante ¾
Só
pense no seu papai!
Que
seja, das irmãzinhas
Junto,
a melhor das irmãs,
Formando
assim três gracinhas,
Três
belas rosas louçãs!
Que
de seu pai seja o orgulho,
Toda
a casa a governar,
Dispondo,
mas sem barulho,
As
coisas no seu lugar!
E
meiga, já substituindo
A
santa que a deu à luz
E
ora descansa, dormindo,
Calma,
à sombra de uma cruz...
Aliás,
para isso é preciso
Que
Helena saiba fazer
De
seu lar um paraíso,
E
assim suavize o sofrer
Do
homem bom que, só no mundo,
Só
com elas três ficou,
E
o golpe que, de tão fundo,
Não
sei como não o matou!
Eis
o que à Helena desejo
De
todo o meu coração,
Deponho-lhe
um casto beijo
Na
linda e pequena mão!
Emílio e Helena
casaram-se em Aparecida, na antiga basílica, em 21 de janeiro de 1932. Tiveram
três filhos: José Jeronymo, nascido em 12 de junho de 1933; Deodato, em 8 de
junho de 1935; e Raquel, que, nascida em 1936, mal passou dos três meses.
Emílio era
comerciante, tendo mantido diversos negócios. Dentre suas atividades
profissionais destaca-se a de sócio-gerente do laboratório cinematográfico
Logograph, localizado em plena Cinelândia. Traduzia do alemão, em que era
autodidata. Helena faleceu em Barbacena, em 1942, aos 37 anos. Emílio no Rio de
Janeiro, em 1943, aos 34.
José
expressaria a dor da orfandade precoce num soneto, em que julgo notar alguma
reminiscência de Antero, um dos poetas que admirávamos e amávamos:
MÃE
Quando, em meio à tristeza desta vida,
Eu
me vejo sozinho e abandonado,
Sentindo
o coração pulsar, cansado,
¾
Mortas as ilusões, e a fé perdida;
Quando,
ansioso, procuro no passado,
No
Ideal que sonhei ¾ visão sentida,
Um
consolo à minha alma dolorida
¾ Um
pouco de carinho ao desgraçado,
Vejo
um vulto celeste e silencioso
Chegar-se
a mim, beijar-me a fronte exangue,
Banhando-me
de luz e suavidade...
És
tu, ó mãe querida, o anjo bondoso
Que
me secas as lágrimas de sangue
A
brotarem da fonte da saudade...
Os irmãos José
e Deodato ficaram sob a guarda da avó Raquel e, falecida esta, dos pais de
Hermenegildo, seus tios Alfredo Gomes Villaça e Sylvia Rivera Villaça.
Estudaram como internos no Colégio de São Vicente de Paulo, onde se acha
atualmente o Santuário da Medalha Milagrosa, no bairro da Tijuca. Seus estudos
foram entrecortados por períodos de interrupção até a ida para Leopoldina,
onde, além de reatá-los, prestaram o serviço militar.
Datam dessa
época, aliás, as primeiras experiências enológicas do futuro Dr. Rivera,
faturadas com o mais puro vinho das adegas vaticanas. Cabe aqui este parêntese
bem-humorado para relatar que nosso novo acadêmico, antigo coroinha e
congregado mariano, que hoje abriga suas dúvidas sob a capa do agnosticismo,
escapou por pouco de ajudar um papa a rezar missa. Com efeito, o menino de 1942
acolitou diante do altar a D. Benedetto Aloisi Masella, Núncio Apostólico no
Brasil, mais tarde camerlengo na Santa Sé e candidato (malogrado) ao trono de
sumo pontífice. E andou provando, à sorrelfa, do seu delicioso vinho de missa.
Passemos a um
interregno árido talvez, mas necessário, para dizer das atividades
profissionais do escritor que nos honramos de receber.
De volta ao
Rio, em 1954, José deu aulas particulares, passou onze dias como bancário, na
Sulacap – Sul América Capitalização, trabalhou na Gráfica Riex e, aprovado em
concurso do Dasp, foi nomeado oficial administrativo e lotado na Casa da Moeda,
Ministério da Fazenda, em junho de 1955. No ano seguinte, transpôs o vestibular
para a Escola Nacional de Engenharia. Terminou o curso em 1960. Não contente,
formar-se-ia ainda em Administração de Empresas (1969) e em Economia (1979),
pelo Ceub, e faria os seguintes cursos de especialização: Engenharia Econômica,
Cepes, Brasília, 1972; Administração Profissional, DNER, Brasília, 1973;
Project Appraisal, University of Strathclyde, Glasgow, 1977. Veio para Brasília
em março de 1961, como Engenheiro Fiscal da Novacap. Exerceu, entre outras
funções, as de chefe do Departamento Econômico (depois Terracap) e, em 1969/70,
diretor-financeiro da Shis – Sociedade de Habitação de Interesse Social. Exerceu
o magistério no Elefante Branco, tendo sido paraninfo da primeira turma do 2.º
ciclo noturno. Em 1962 foi convidado a lecionar Física no Curso de Arquitetura
da UnB, onde ficou até 1964. Nesse ano, passou a fazê-lo no Ciem, vinculado à
UnB, licenciando-se em 1968. Lecionaria também no Ceub e na AEUDF
(Administração da Produção e Planejamento). Nomeado, por concurso, Técnico de
Tributação, mais tarde Auditor Fiscal do Tesouro Nacional. Serviu no Gabinete
do Ministro da Fazenda de 1974
a 1979, e deste ano a 1985 no do Ministro do
Planejamento. Voltou ao Ministério da Fazenda, donde, aposentado como
Secretário da Receita Federal Adjunto, saiu para chefiar gabinete na Câmara dos
Deputados, situação em que se encontra até hoje. É co-autor, ao lado de
Frederico Máximo Vianna Barbeitas, Guenther Jung e Jupy Barros de Noronha, do
livro Fontes de Recursos Federais para Estados e Municípios.¹
Findo esse
interregno, que em verdade só tem de árido o resumo dos fatos, riquíssimos, por
minhas pobres palavras, passemos a outro, inequivocamente fecundo em flores e
frutos. Jeronymo casa-se em 1962.
A esposa, Naly Sá Roriz Rivera, advogada e professora,
dá-lhe por prole cinco meninas: Helena Maria, Andréa Lúcia, Ana Luisa, Tania
Cristina e Flávia. Como se não bastassem tantas mulheres, vieram quatro
netinhas: Mayra, Fernanda, Anita e Isadora. Único varão nessa descendência, e
penúltimo broto até agora, o menino Tiago.
Jeronymo e Naly,
que se casaram no mesmo mês em que eu e Célia ¾nós no começo, eles no fim
de junho¾,
foram nossos padrinhos de casamento. Amigos fraternos, acabamos num compadrio
duplo: eu e minha mulher somos padrinhos de sua filha caçula.
Como oferenda
poética à afilhada ¾e,
extensivamente, a toda a família¾ lavrei então estes versos:
SONETO PRECIOSO
PARA MINHA AFILHADA FLÁVIA
ou simplesmente
SONETO DE FLÁVIA
Flavinha — flâmea gema que cintila
livre de
engaste, como a pura Idéia,
favo menor de
quíntupla colméia,
fulva
essência a agitar morena argila;
Flávia — de
viva alfaia, fanopéia,
flama
inquieta sem sombra de favila:
levem-te
sempre à flor de água tranqüila
brandas
brisas em fúlgida coréia.
E quando em
pleno oceano, além da aurora,
nem vagas
vejas, nem siroco aflante:
flavo favônio
a afável mar se alie.
E assim,
feliz, Flavinha, vida em fora,
sempre no
amor dos teus —neste flamante
lar das cinco
meninas— Deus te guie.
INVENTION DE LA NUIT
De
ce silence et de cette ténèbre
j’édifie
ma nuit
particulière
et intransférible.
Il
ne me faut pas d’inventer les étoiles,
elles
s’éveillent et luisent d’elles mêmes.
Et à
minuit une lune sombre
lève
sa face d’argent à l’horizont
et
verse dans mes yeux un pleur, un froid.
Verteu para o
alemão o poeminha “Olhos”:4
AUGEN
Plötzlich
finde ich
die
gewaschte Schönheit deinen Augen heraus.
(Zwischen mir und den Schlaf
du trägst eine Sonne in den Lippen
und im Busen Venus.)
Deine
Augen sind wie ein Himmel, daβ geregnet hat.
(Recentemente,
já senhor de notável bagagem de tradução poética, transpôs esse mesmo poema
para o grego moderno, que ora estuda. Devo renunciar a ler essa versão, pois
para mim grego moderno é grego...)
Com poemas
originais participou em duas obras coletivas: em Alma Gentil
– Novos Sonetos de Amor, organização de Nilto Maciel,5 com
“Refúgio”, “Depois...” e “Encantamento”; e na recente Antologia de Haicais
Brasileiros, de Napoleão Valadares,6 com esta bela composição:
Serras, as cigarras
serram o ar primaveril.
Serragem? a chuva.
Com algumas
traduções do francês entrou em Caliandra – Poesia em Brasília,7 em
1995.
Daí por diante,
o tradutor não parou mais. E nos deu, nesta ordem: Poesia Francesa: Pequena
Antologia Bilíngüe,8 sua estréia em obra individual, “já em odor
de mestria”, conforme disse eu alhures (textos de apresentação assinados
por Arino Peres, por João Carlos Taveira e por mim); Cidades Tentaculares,
de Émile Verhaeren;9 Rimas, de Gustavo Adolfo Bécquer, com
estudo introdutório de José Antonio Pérez Gutiérrez;10 Gaspard de
la Nuit ,
poemas em prosa de Aloysius Bertrand, com prefácio de Xavier Placer (redigi as
orelhas).11 Em colaboração com Fernando Mendes Vianna e comigo,
assina as traduções de Poetas do Século de Ouro Espanhol, estudo
introdutório de Manuel Morillo Caballero;12 Victor Hugo: Dois
Séculos de Poesia13 e O Sátiro e Outros Poemas,14
estudo introdutório de Mendes Vianna; comigo, com José Antonio Pérez, José Santiago Naud, Kori Bolivia, Manuel Graña
Etcheverry, Rodolfo Alonso, Rumen Stoyanov e Ángel Crespo (in memoriam),
Poetas Portugueses y Brasileños de los Simbolistas a los Modernistas (versão
para o espanhol; organização do saudoso José Augusto Seabra);15 com
José Augusto Seabra e comigo, Antologia Pessoal de Rodolfo Alonso;16
comigo, 25 Sonetos Descaradamente Eróticos, de José Antonio Pérez.17
Tem prontos para o prelo: em colaboração, uma coletânea de poetas
ibero-americanos, a ser editada pela Associação de Adidos Culturais em
Brasília; singularmente, La Voz
a Ti Debida, de Pedro Salinas. Mencione-se, enfim, sua colaboração em
periódicos como o Boletim da ANE, a Revista de Poesia e Crítica,
a Revista da Academia Brasiliense de Letras, Literatura e Poesia
para Todos, e sua atividade de conferencista na Associação Nacional de Escritores.
Sua fortuna
crítica arrola textos impressos de Adelto Gonçalves, Afonso Ligório Pires de
Carvalho, Alexandre Machado, Álvaro Alves de Faria, Antonio Carlos Osorio,
Antonio Olinto, Branca Bakaj, Fernando Py, Hildeberto Barbosa Filho, Manoel
Hygino dos Santos, Mário Teles de Oliveira, Vili Santo Andersen, Wilson
Martins, jornal Linguagem Viva, a par de comentários epistolares de
Adelaide Petters Lessa, Alexei Bueno, Alphonsus de Guimaraens Filho, Aluízio
Valle, António Campos, Antônio Houaiss, Carlos Alberto Abel, Carlos Nejar,
Cleonice Berardinelli, Dalila Pereira da Costa, Enéas Athanázio, Fausto Cunha,
Gerson Valle, Ivan Junqueira, Ivo Barroso, José Mindlin, José Paulo Paes,
Luciana Stegagno Picchio, Nilto Maciel, Oiliam José, Reynaldo Valinho Alvarez,
Whisner Fraga, Yone Rodrigues. Figura no Dicionário de Escritores de
Brasília, de Napoleão Valadares,18 e em Sob o Signo da
Poesia: Literatura em Brasília, de minha autoria.19
Recebeu em 2001
o Prêmio Joaquim Norberto de Tradução, da União Brasileira de Escritores – RJ,
por Poetas do Século de Ouro Espanhol, e em 2002 o Prêmio Cecília
Meireles de Tradução, da mesma entidade, pelas Rimas de Bécquer.
Sendo a tradução
de poesia o campo em que particularmente se notabiliza o seu labor literário,
não posso terminar esta oração sem recordar-lhes um exemplo maior, tirado de Poesia
Francesa: Pequena Antologia Bilíngüe. Leiamos a sua belíssima versão do
belíssimo soneto “Recueillement”, de Charles Baudelaire:
RECOLHIMENTO
Sê sábia, ó minha Dor, e fica sossegada.
Tu querias a Tarde, ei-la: já ao casario
Se abraça uma atmosfera envolvente e velada,
A alguns trazendo a paz, aos outros desvario.
Enquanto dos mortais a sórdida manada,
Escrava do Prazer, esse verdugo frio,
Vai colher o remorso em festa degradada,
Minha Dor, dá-me a mão, vem comigo, eu te guio
Para longe daqui. Vem ver como pendeu
O Tempo, em veste anciã, sobre os balcões do céu;
Subiu da água profunda o Pesar sorridente;
O Sol, já moribundo, escondeu-se e descansa,
E, qual longo sudário a se arrastar no Oriente,
Escuta, amiga, escuta: a doce Noite avança...
É esse, em tosco
debuxo, o poeta e tradutor que passa a enriquecer a Academia de Letras do
Brasil, na Cadeira n.º XXII, de que é patrono Antônio de Alcântara Machado,
objeto de seu substancioso discurso de posse. Recebemo-lo de braços abertos,
pelos seus méritos de escritor, nacionalmente reconhecidos, e realçados por
suas altas qualidades humanas.
Bem-vindo a esta
Casa, José Jeronymo Rivera.
NOTAS
1.
Codesul,
Curitiba, 1987.
2.
Número de agosto
de 1992.
3.
Folha da ANE, julho de 1992.
4.
Ib., novembro de 1992.
5.
Códice, Brasília,
1994.
6.
André Quicé,
Brasília, 2003.
7.
André Quicé,
Brasília, 1995.
8.
Thesaurus,
Brasília, 1998; 2.ª ed. no prelo.
9.
Id., 1999.
10.
Embaixada da
Espanha / Thesaurus, Brasília, 2001.
11.
FAC – Fundo da
Arte e da Cultura, Secretaria de Cultura do DF / Thesaurus, 2003.
12.
Embaixada da
Espanha / Thesaurus, Brasília, 2000.
13.
Thesaurus,
Brasília, 2002.
14.
Edições Galo
Branco, Rio de Janeiro, 2002.
15.
Instituto Camões
/ Embaixada de Portugal na Argentina / Thesaurus, 2002.
16.
Thesaurus,
Brasília, 2003.
17.
Círculo de
Estudos Clássicos de Brasília, 2003.
18.
André Quicé,
Brasília, 1994; 2.ª ed. 2003.
19.
Thesaurus,
Brasília, 2003.
B6/18VI4
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