Anderson Braga Horta
In: Sob o Signo da Poesia: Literatura em
Brasília.
Thesaurus / FAC, Brasília, 2003.
Nascemos muitas vezes. Há o nascimento
biológico, o único certificado como tal pelos cartórios; mas há outros e
outros, alguns mais intensos que o primeiro, já porque desses nos possamos
lembrar, já por iniciarem-nos em vivências que, pertinentes à globalidade da
vida, parecem maiores que esta, mais férvidas, mais densas, mais vibrantes. Na
mineira cidade de Leopoldina tive o privilégio de nascer —juntamente com
Deodato Rivera e mais uns poucos jovens inexpertos e ansiosos— para alguns
aspectos novos e excitantes da vida. Para aqueles que se nos desvelam com a
adolescência. E para a Poesia.
Preciso resistir ao impulso de falar de cada
um dos amigos e companheiros de então. A lembrança deles encheria páginas
calorosas de um livro de memórias; mas devo conter-me nos limites de uma
apresentação — a do poeta Deodato Rivera, que vi nascer, que nasceu comigo, e
com quem comungo na irmandade da Poesia. E da Amizade.
Em
Leopoldina, naquele ano remoto e santo de 1950, encontramo-nos, não só no
sentido social, mas no sentido espiritual da palavra, um grupo de adolescentes
que nos faríamos amigos fraternos, para além das circunstâncias de tempo e
espaço. Desse grupo, os que haveria de aproximar, em breve, também a Poesia
éramos eu, Deodato e seu irmão, José Jeronymo, Hélcio Campomizzi e, logo, José
Herberto Dias. Hélcio —irmão de Campomizzi Filho, que se tornaria crítico
literário— cursou o caminho da Odontologia e, em seguida, o da Medicina,
deixando para trás a tentação do Poema. Morreu de repente, do coração. Está
presente neste livro, num de seus poemas confessionais, memorialísticos,
elegíacos, o "Chapeuzinho Vermelho" (de apelido que lhe botamos, nem
sei bem já por quê); mas está presente sobretudo em nós, como o lembra Deodato
numa carta em verso de 1976 (uma carta em verso, sim! que ainda então, no longo
desterro, era capaz desse romantismo o Poeta, como era, em seus tempos
ubaense-leopoldinenses, o próprio Hélcio). Diz o missivista, referindo-se à
perspectiva de volta à Pátria (para o que, entretanto, ainda teria de esperar
uns quatro anos):
Para que dizer-te a dor de já saber
que o nosso Campomizzi não virá
ao certo bota-dentro já mais perto?
Assim nos quer o fado, mas vençamos
a dor com o sentimento da presença
do amigo amado em nós jamais mortal.
Mas avancei demais. Voltemos a Minas. Em
1953, já iniciados, todos nós, nos primeiros mistérios poéticos (e noutros,
paralelos, mais gozosos, talvez, mas também, com certeza, infinitamente mais
pungitivos), reunimos nossas penas no Três
de Junho, "órgão dos alunos do Colégio Leopoldinense", obra de
Jeronymo e Deodato, respectivamente diretor e secretário, prestigiada por
Monsenhor Guilherme de Oliveira, que dirigia o Colégio. Os dois irmãos
colaboraram profusamente em prosa e verso. Outro tanto se diga de Gustavo
Monteiro de Castro Júnior, desaparecido, como Campomizzi, antes de madura a
hora. Do grupo, compareceram ainda Hélcio e Herberto, com uma prosa cada um,
nos sete números, tirados todos naquele mesmo ano.
José Jeronymo Rivera —aluno excepcional, que
passava com média final 10 em todas as matérias— exibia uma grave e forte
vocação poética, cedo e injustificavelmente abandonada. Transcrevo-lhe um
soneto (que diria de filiação anteriana) impresso no n.º 2, de 20 de maio:
MÃE
José Jeronymo Rivera
Quando,
em meio à tristeza desta vida,
Eu
me vejo sozinho e abandonado,
Sentindo
o coração pulsar cansado,
—
Mortas as ilusões, e a fé perdida;
Quando,
ansioso, procuro no passado,
No
ideal que sonhei — visão sentida,
Um
consolo à minha alma dolorida
—
Um pouco de carinho ao desgraçado,
Vejo
um vulto celeste e silencioso
Chegar-se
a mim, beijar-me a fronte exangue,
Banhando-me
de luz e suavidade...
És
tu, ó mãe querida, o anjo bondoso
Que
me secas as lágrimas de sangue
A
brotarem da fonte da saudade...
Deodato era também dos
melhores alunos, embora sem a rigorosa performance
do mano. Os primeiros versos que publicou no Três de Junho revelam o jovem
já voltado para uma poesia pensamental, social. Do n.º 1, datado de 5 de maio:
RESSURREIÇÃO
(Paráfrase de Bécquer)
Na tosca sala jaz
emudecida
A velha harpa,
majestosa outrora,
Que hoje, no pó
dos anos esquecida,
Relembra,
triste, o seu passado e chora...
E nela quantas
notas dormem, quantos
Suaves sons lhe
morrem ressentidos
Da longa
ausência de u'a mão que cantos
Lhe venha
haurir de lábios ressequidos!
E quanto gênio, eu
penso então, no fundo
Das almas
dorme, por não ter no mundo
A mão que o
tire do marasmo atroz;
A voz que o faça,
Lázaro, da campa
Sair sorrindo,
em lhe afastando a tampa,
Ressuscitado,
ouvindo Aquela voz!...
Perdoem-me os amigos que eu lhes exiba assim
essas primícias. Se defeitos tiverem, — são primícias. E suas qualidades são
patentes.
No n.º 5, de 20 de agosto, estrearia a
tendência social numa tentativa de verso livre, o "Poema Utópico", de
que extraio a conclusão:
Se
todos os homens fossem fortes de caráter,
se
todos fossem sábios,
se
todos fossem bons,
então
não haveria guerra, revoluções, conflitos.
Então
os exércitos seriam desnecessários,
e
os homens, felizes.
Então,
o Mundo teria ganho a paz.
O último número (e aqui me lembra o famoso
soneto de Augusto dos Anjos, de que a terra leopoldinense abriga os ossos...),
de 25 de outubro, trará um poema filosófico, já em forma sensivelmente evoluída:
POEMA
DO HOMEM SIMPLES
Olhai-o bem:
aquele é o homem simples...
Reparai como segue
a passos leves
com a leveza de
sua consciência...
Anotai o seu ar
despreocupado,
como quem não
se importa com o futuro,
como quem do
passado não se lembra.
Ele vive somente do
que apalpam
suas mãos,
do que vêem
seus olhos,
percebem seus
sentidos.
O presente que vive
é sua vida;
o passado são
luzes apagadas,
o futuro uma
porta ainda fechada
que se lhe há
de abrir...
Olhai-o bem: aquele
é o homem simples...
Seus ideais de amor
coloca-os perto,
onde possa
alcançá-los, e, feliz,
sorri dos
versos tristes do poeta
incompreendido;
não povoam suas
noites pesadelos;
seu amor se
assemelha às águas mansas
de um lago
sossegado,
onde a lua,
boêmia das alturas,
vem se mirar
como donzela ao espelho;
seu amor, como
as águas desse lago,
é quieto e
silencioso, humilde e bom;
sua história é
a mais simples das histórias,
sua vida, sem
louros e sem glórias,
é a vida de
muitos neste mundo...
Olhai-o bem: aquele
é o homem simples...
As transcrições mostram a coerência da
trajetória vital de Deodato Rivera: a seriedade no estudo; a diversificação das
leituras; a preocupação ética, acima, a meu ver, da estética. No jovem, já o
homem. Falta apenas, ao quadro, a nota lírica. Para completá-lo, nada melhor
que este belo soneto:
Volto ao
convívio de tuas cartas... Leio
linha por
linha, devagar, buscando
achar de novo a
sensação que veio
quando, uma a
uma, vinham-me chegando.
São mil ternuras,
frases carinhosas,
abraços,
sonhos, confissões, desejos...
(Esse perfume
bom de puras rosas
lembra o
perfume dos teus puros beijos...)
E descobrindo vou,
maravilhado,
que tem diverso
significado
cada sinal,
cada palavra, tudo:
aqui, no ponto,
houve um suspiro mudo...
Houve um
sorriso, ali, naquele traço...
Quer dizer
beijo este "saudoso abraço"...
Pronto. Estão aí os traços fundamentais do
retrato do Poeta. E do ser humano que é Deodato Rivera. O mais —insonegável, é
certo— é desdobramento previsível, seqüência, conseqüência. A partida fôra
dada.
Assim como nascemos e renascemos, também
morremos vezes várias, no curso de nossa vida terrena. Já ambos no Rio de
Janeiro, Deodato e eu retomamos as paralelas de nosso trajeto: trabalhamos
juntos na mesma companhia de seguros, fizemos o mesmo concurso para a Câmara
dos Deputados, passando em colocações contíguas. Em breve, porém, as paralelas
de novo se afastariam, dessa vez de maneira mais radical, e por longuíssimos
anos. Deodato revelava desde cedo insopitável vocação sacerdotal, isto é, a necessidade de entrega a uma causa; causa que
fosse a um tempo filosófica e humanitária, que outro caminho não comportaria as
dimensões de sua formação e de seu temperamento. (Nesse caminho, negligenciou a
Poesia.) Passada a euforia do governo JK, da construção de Brasília, vieram os
problemas, e veio 1964, inaugurando o anticlímax trevoso da Redentora. Nosso agitador foi demitido
por abandono de cargo, não obstante o parecer da comissão administrativa, que
viu justa razão para sua ausência. Perseguido, refugiou-se na embaixada da
Iugoslávia, onde ainda pudemos visitá-lo eu, seu irmão e amigos. Começava a
longa morte do exílio.
Em terras estrangeiras, contudo, pôde o homem
retemperar-se. Conheceu novos climas, novos costumes, outras culturas; estudou,
lecionou; reviveu, enfim. E, passada uma década de andanças, ocorreu a
ressurreição do poeta. Para que ele próprio o relate, transcrevo parcialmente
carta que me enviou de Les Ulis, França, datada de 4 de agosto de 1979:
Não lhes falei nada do livrão porque queria fazer surpresa.
Agora que já sabem posso esticar-me um pouco. Juntei toda a obra poética desse
"renascimento" de há cinco anos em dez livros bem marcados, e o resto
que está em inglês talvez se organize num último livro cujo título já escolhi: Songs of Love and Peace. Dos dez nove
são em português, e constituíram o livrão chamado Diaspoerança. O décimo, que consta de 12 poemas em espanhol,
chama-se Canto a Chile en Sangre, do
qual lhe estou enviando uma amostra tomada ao azar, não sendo o que mais
aprecio. Condensa algo da experiência desse segundo exílio (o poema, não o
livro todo que é produto da grande tragédia social e humana que nos foi dado
assistir, infelizmente). Gosto demais desse décimo livro, apesar de mais
panfletário e talvez mais ingênuo e otimista, apesar de tudo, que os outros.
Mas como, segundo penso, foi ele — ou melhor, sua motivação, a náusea do banho
de sangue fascista, o terror, a angústia por amigos, conhecidos, povo que
admirávamos — que determinou o "renascimento" poético, a angustiada
busca das raízes para reencontrar o desejo de vida e de amor quando a morte
escandalosa e cruel de milhares de inocentes te fazem duvidar de tudo e até de
ti mesmo, perdôo-lhe a natureza talvez menos poética e propositadamente
didática de que imagino o bardo de Lajinha não gostará. (Se tudo correr bem
mandarei cópia breve, depende de encontrar uma máquina copiadora amiga, pois os
fundos de difusão estão a zero.)
Já Diaspoerança
é uma história complicada, assim uma espécie de vários poetas num só, apenas
que com o mesmo nome para não imitar o nosso Pessoa. Na verdade há de tudo em
temática, tonalidade, se me entende, e estilo. O que me animou a reunir tudo
foi a opinião dos amigos a quem os poemas despretensiosos agradavam, como vocês
aí em Brasília e algumas aves de passo que estimulavam a publicação. Quando
classifiquei tudo por data percebi que a ordem temática saía por si mesma,
havia uma clara evolução ou processo de transformação (não necessariamente para
melhor, no caso cada "fase" correspondeu a uma importante etapa numa
espécie de catarsis e redescoberta
interior para libertar os fantasmas reprimidos há 4 décadas quase, melhor, ao
longo de, pois aos primários agregaram-se alguns secundários duros de roer...).
E olha o livrão pronto sozinho! Não deu outro trabalho que fazer uma
dedicatória, um poema que se chama "Para Alice", bolar o
título-síntese e pronto.
Na linha seguinte, dir-se-ia
"ligeiramente desconfiado de que o poeta morreu"... de novo! Mas isso
já não me preocupou; já sabia, então, que a vida é feita de mortes e
ressurreições; e o poeta nunca morre de todo.
E
o livro aqui está, enfim; com aproximadamente a mesma estrutura e os mesmos
poemas, mudado o título.
Voltaria
o amigo a escrever-me em 12 de setembro. Preparava-se para o regresso, que se
daria no ano seguinte. Da emoção dessas vésperas dizem uns tercetos e um soneto
que me enviou nessa carta; transcrevo-os, pois não foram incluídos no livro.
Primeiro os tercetos:
PASSAPORTAGEM
O
poeta a que sai?
Em
Paris buscar vai
Documento
feliz.
O
poeta o que tem?
Tem saudades, no trem,
De
um longínquo país...
O
poeta o que quer?
Quer
gritar, chorar quer.
Mas
coragem, quem diz?
O
poeta o que faz?
Faz
de conta que em paz
Vai
de trem a Paris...
Agora o soneto (branco), em que sobressai a beleza
do verso final:
BRASIL
Amava-te e
deixei-te por amor,
E mais amor
nasceu no longo exílio.
Maior fora essa
funda provação,
Maior amor
trouxera-te oferente.
O lábaro que
ostentas estrelado
Nas asas da
saudade me seguia
E em mim mesmo
brilhava, não perdido,
Porque comigo
erravas pelo mundo.
Venci contigo
míticos fantasmas,
Dragões
imaginários derrotei,
Saltei
barreiras e evitei escolhos.
E em noites de
amargura, se chorava,
Consolo me
trazias, pois sentia
Teus rios a
escorrerem-me dos olhos...
Deodato Rivera, o homem e o poeta, está,
pois, entre nós. A entranhada vocação sacerdotal a que aludi, ele a dirige,
hoje, à causa da criança — que se confunde, a bem dizer, com a causa nacional.
Deixo nestas linhas, repito, apenas esboçados
os traços essenciais do poeta e do homem. Há de sem dúvida ampliá-los e
aprofundá-los a leitura e fruição dos poemas.
(1994)
Grata, caro amigo de Deodato, aquele que fortunatamente conheci num encontro de jovens índios e timbaladeiros urbanos na Bahia. Nos Nos am tanto à primeira vista que a ele e à minha amiga, ali presente conosco, convidei para que fossem padrinho e madrinha de um filho ainda não nascido, nosso Moreno. Deodato encantou-se em descobrir em mim a neta do Prof Lydio Machado Bandeira de Mello, a quem muito admirava. Pelo seu relato, foi seu professor também. Deo, Meu compadre querido, compartilhou conosco lindos anos no Rio de Janeiro, em que vivenciamos muitas alegrias, parcerias, sonhos e aprendizados. O vi voar e arriscar novos voos.o vi recitar nas mais diversas situações seus versos amorosos pelo ser humano, pela vida, por nosso país, que tanto amava.O vi ser pego duas vezes pela doença que venceu e depois o venceu. O vi nomear seus gatos com os nomes dos autores que o inspiravam, apaixonado que era pelos livros e pelo conhecimento que deveria sempre nos tornar mais humanos. ÀÀminha comadre querida, Denise e a você, carocamigo do meu compadre, agradeço por me trazerem Deodato de volta, nestes dias em que, driblando o medo, estou cultivando a esperanca de que nossa nação não se dirvirtue de sua missam de um dia ser mãe gentil dos seus filhos, pois talento e generosidade lhe sobra. Gratidão! Cláudia Bandeira, com amor no coração.
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